Paracatú, 08 de junho de 2040
Nos primeiros dias de junho desse distante 2020, sucederam-se manifestações contra o racismo, que o Galeano definiu deste modo: ”para dizer cegos, diz-se não visuais, um negro é um homem de cor”. O racismo se aprendia na família, na sociedade, na escola, numa escola que, nesse tempo, ainda reproduzia um modelo educacional obsoleto. Mas, também na escola se poderia desaprender o racismo e outros humanos defeitos. Crente dessa possibilidade, tentei ajudar o amigo Apolinário a interpelar algumas verdades, a questionar certezas “absolutas”.
A “aula dada” pelo Apolinário, cujo início descrevi na cartinha de ontem, continuou do seguinte modo: após a “chamada dos alunos”, fez-se o que ele chamou de “registro da matéria dada”. Seria lógico que um “sumário” fosse registado no final da aula, mas presumamos que o Apolinário possuía uma bola de cristal, que lhe permitia antever o futuro, e vamos ao que interessa.
Entre o registo da matéria “dada” e a distribuição de material foram-se mais 5 minutos. Nova multiplicação de 5 minutos por 35 alunos e lá se foram mais 175 minutos. A aula mal tinha começado e as conversas paralelas já se haviam instalado, complementadas com mensagens de celular (discretamente escritas por debaixo das mesas) e jogos em nada relacionados com a “matéria”. Entre admoestações, avisos e suspensões sucessivas do discurso, o professor despendeu um total de 10 minutos. Contas feitas – por “não haver condições para dar a aula” – mais 350 minutos desperdiçados.
Um longo e inútil sermão final e a recolha de materiais consumiram os últimos 5 minutos da aula. Ora… 5 vezes 35 dá mais (ou, mais precisamente, dá menos) 175 minutos desperdiçados.
Nos 25 minutos de aula restantes, o Apolinário ainda tentou ensinar o que seria suposto ensinar. Mas, nem fingiu que ensinava, nem os alunos se mostraram empenhados em fingir que aprendiam. Cerca de metade – por excesso ou defeito de pré-requisitos para a compreensão da “matéria dada”, ou por incompreensão do código linguístico usado pelo professor – “desligaram” (terminologia usada pelo Apolinário).
Arredondando os números: 25 minutos vezes vinte alunos (e estaria a ser muito generoso…) dava 500 minutos. Somando: 175 + 175 + 350 + 175 + 500 = 1375. Estes números não eram contas de merceeiro, eram realidade. Numa só aula de 50 minutos, o professor desperdiçou 1375 minutos. Convertendo a cifra em horas, concluiremos que o prejuízo foi de mais de 22 horas de ensinagem inutilizadas.
Eu já sabia que os críticos do costume iriam rezar-me na pele. Tinham legitimidade de o fazer, porque “davam aula” e não sabiam fazer mais nada. Mas eu nem sequer evoquei o tempo perdido na realização de provas, ou resultante das faltas dos professores. Muito menos referi as conclusões do relatório da Organização das Nações Unidas, que nos dava conta de outros desperdícios…
Acrescentarei que, no final de uma tão simples demonstração, ainda esbocei uma análise menos “quantitativa”. Conversei com o Apolinário sobre o conceito de “envolvimento na tarefa” e sobre práticas do paradigma da aprendizagem, nas quais o tempo desperdiçado era nulo, ou quase nulo. Foi, também, tempo desperdiçado. À semelhança de outros professáurios, o Apolinário só ouvia aquilo que queria ouvir. E, como se nada tivesse escutado, pôs fim à conversa:
Zé, repara bem! Tu não fizeste o registro do que me faz perder mais tempo.
O que te faz perder mais tempo?
São aqueles alunos que estão sempre a fazer perguntas e a quebrar-me o ritmo da aula!
Alguém sabe o que é o “ritmo da aula”? Nem eu!
Por: José Pacheco
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