Aparecida, 10 de junho de 2040
No mês de junho de 2020, nos Estados Unidos e em muitos outros países, milhares de pessoas se manifestavam contra o racismo.
Na Internet, um rapper comentava a fotografia de um manifestante deitado no chão, de cara tapada e punho semi-erguido: “por mais corpos que caiam no chão e por mais sangue que se derrame, cadáveres serão sempre aqueles que vagueiam sem alma nem compaixão”. Mais de um século decorrido sobre a Lei Áurea, gente negra continuava a sentir literalmente na cor da pele, a injustiça, o preconceito e o medo. “O medo de simplesmente existir”, porque o racismo poderia ter saído dos códigos legais, mas não saíra das consciências.
Nesse distante mês de junho, Miguel, criança de 5 anos, negra e pobre, morria por querer estar perto de sua mãe, faxineira de um prefeito. E um cidadão negro nos contava a sua experiência de racismo, na escola. Depois de uma colega dizer que “estava apaixonada por um rapaz negro” a professora respondeu: “Beijar um negro? Argh”!
O “10 de Junho” foi chamado “Dia da Raça” pelo regime salazarista. Havia posições eugenistas e racistas no Estado Novo. Com essa comemoração, a ditadura enaltecia as caraterísticas de um Império colonial, que quase nenhum outro país possuía.
Com o advento da democracia, o “10 de Junho” passou a chamar-se “Dia de Camões e das Comunidades”. Celebrava-se o poeta, que escreveu que “todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades”. O vate português foi contemporâneo do achamento do Brasil, mas estava na contramão de uma colonização predatória, escravocrata… racista. Mas, o significado do seu verso “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” somente seria entendido cinco séculos depois.
Agostinho da Silva, outro português ilustre, criador do Instituto de Letras da Universidade de Brasília, escreveu, na década de sessenta: “Portugal desembarcou na Ásia, desembarcou na África, Portugal desembarcou na América. Só falta Portugal desembarcar em… Portugal”. No final da década de vinte deste nosso século, as palavras de Agostinho talvez pudessem significar que uma nova educação estava a nascer no sul e migraria para o hemisfério norte – talvez um novo Renascimento desapontasse, sem escravatura, sem racismo.
O conceito de raça era vazio e perigoso. Biologicamente, não há e nunca houve “raças humanas”. Esse conceito era usado para justificar discriminação, exploração e outras atrocidades. Tal como outros traços culturais, essa triste herança de uma colonização escravocrata era uma chaga aberta na sociedade, reproduzida pela educação familiar, societal e escolar. A sociologia da educação havia demonstrado que a chamada “escola tradicional” reproduzia um modelo escolar e social impregnado de valores arcaicos, retrógrados. Direta ou indiretamente, as práticas decorrentes dessa matriz axiológica contribuíam para a perenização da barbárie.
Há quase 150 anos, o mestre Eurípedes Barsanulfo contratou professores negros para a sua escola. Imaginai a reação dos coronéis locais! A gripe espanhola o vitimou e a sua obra entrou em declínio, se dissipou. Mas, mesmo que Eurípedes não tivesse desencarnado, o “racismo” dos fundamentalistas da época teria acabado por destruir o seu projeto. Em 1907, Eurípedes antecipava, em mais de cem anos, os movimentos antirracistas do século XXI. Ele sabia que o racismo ensinado na família, na sociedade e na escola, também se pode desaprender na família, na sociedade e… na escola.
Por: José Pacheco
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