Arraial d’Ajuda, 14 de junho de 2040
A Carolina era um daqueles seres que só encarnam uma vez em cada milénio – sensível, bondosa e, sobretudo, mãe terna e dedicada. No terceiro mês da pandemia, dela recebi este WhatsApp:
Enviei uma mensagem para a escola da minha filha, uma mensagem amorosa. Agradeci todo o empenho da escola, reconheci todo o trabalho e dedicação deles, mas expliquei que, infelizmente, não são todas as famílias que se adaptam a essa proposta, ainda mais em um momento tão delicado como o que estamos vivendo.
Perguntei se a escola tem alguma proposta para as famílias que não estão acompanhando as aulas virtuais. Falei que a hora de ressignificar a educação é agora e que estamos trabalhando para isso. Comentei que, como guardiã da educação dos meus filhos, estou buscando caminhos para que eles aprendam com mais amor e sentido.
Estamos juntando forças e estruturando uma proposta, para libertar nossos filhos desse sistema que não educa e só machuca. Nesta semana, um amiguinho da minha filha, um jovem de 13 anos, pediu para ela não contar a ninguém, mas ele estava pensando em se matar. Entrei em contato com a psicóloga da escola, para falarmos com a família dele. Conversamos. Senti gratidão pelo vínculo e espaço de diálogo.
São muitos os fatores que levam um adolescente a querer se matar. Não estou falando que a escola é exclusivamente responsável por isso, mas a escola tem um papel importante, junto com a família. Dois dias depois desse episódio, a escola envia essa circular, falando que serão mais rígidos na entrega das tarefas, que as câmeras precisam ficar ligadas, que as crianças não podem lanchar durante as aulas…
Tento entender, mas é difícil. � Ah, Zé! Temos muito trabalho pela frente, tanto a aprender! Por que a escola é tão indiferente? Por que se desconecta tanto? Como não percebem os pedidos de socorro das crianças? Como conseguem manter uma postura tão autoritária de avaliações e aulas, sem considerar como as crianças estão?
Não transcrevo a ridícula “circular” da escola, porque tenho os professores em alta estima e sei que apenas obedecem a ordens de “superiores hierárquicos”. Providencialmente, no mesmo dia, a minha amiga Kátia me fez recordar palavras do mestre Anísio, que, tal como a Carolina, se interrogava sobre a causa de tanta insensibilidade.
Anísio pugnava por uma nova escola, que substituísse aquela que continuava indiferente às necessidades comuns dos homens, ancorada em formas arcaicas de ensino. Mas a escola, que tentou instalar em Brasília, foi rechaçada em abaixo-assinado pela população do bairro onde Anísio a quis implantar. Visionário, repetia que se deveria considerar o aprendente em sua totalidade, sua história, sua cultura e num contexto social específico. A escola absorvera funções tradicionais da família e da vida comunitária e que à vida comunitária deveriam ser devolvidas, dado que “a educação de um povo somente em parte se faz pelas suas escolas”.
Tal como o seu contemporâneo Lauro Lima, Anísio antecipava, em meio século, o projeto da Rede de Comunidades de Aprendizagem do Distrito Federal. A secretaria de educação do Distrito Federal citava Anísio em documentos oficiais. Porém, traindo as nobres intenções de Anísio, a mesma secretaria tentava destruir projetos nele inspirados. Eram tempos difíceis aqueles! E a amiga Kátia assim concluía a sua mensagem:
Ah! Se o sistema lhe tivesse dado ouvidos, hoje seria tudo diferente. Enquanto Cidadãs e Cidadãos, lamentamos não ter sido assim. Eles ouvem, mas não nos escutam.
Por: José Pacheco
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