São Nicolau, 17 de junho de 2040
Já vos falei do Senhor Cardoso, um generoso ser humano, que saciava a minha sede de saber e me mostrava que há muitas maneiras de aprender… e de viver. Aferi os meus afetos pelo amor que ele nutria pela sua companheira, um amor profundo e sem contrato. O seu exemplo contrastava com péssimos exemplos, que tentei não adquirir na escola. Apenas imitei a professora da quarta classe…
… A Dona Lourdes era uma professora diferente. Dos outros não quero guardar memória, porque foi com eles que eu aprendi a odiar. Nesse tempo, era muito raro alguém concluir a quarta classe. Fui uma excepção. Não só fui aprovado, como parti para o exame de admissão ao “ciclo preparatório”.
O Alberto Furão, nosso vizinho de cortiço, costumava dizer: “Filho de pobre não tem dinheiro para sair da quarta classe e se fazer doutor”. Mas, na agulha, no dedal e na máquina de costura, na exaustão de longos dias de trabalho, no desgaste de breves noites mal dormidas, a vossa bisavó costureira ofereceu-me a oportunidade de “continuar estudos”. E o Pai António matriculou-me no técnico-profissional de montador eletricista.
Não era coisa de que eu gostasse, não tinha vocação para aquilo. Mas, “filho de pobre” precisava trabalhar, para poder estudar. E o dinheiro que eu ganhava como eletricista permitiu-me ir além do curso técnico… e virar professor.
Como vos disse, quando fui à escola, já sabia ler. Esse fato me conferiu um estatuto especial. Era eu quem portava os recados e o livro de ponto entre salas de aula e o gabinete da direção. A minha memória de longo prazo – que nos idosos se aperfeiçoa – ainda recorda o velho edifício da escola primária. Era da maior pobreza que se possa imaginar.
A sala da primeira classe tinha um quadro negro, encimado por um Cristo pregado numa cruz imensa e ladeado pelas fotografias de dois ditadores. As carteiras estavam a desfazer-se e abanavam, sempre que o professor avançava pelo meio delas, para bater nos “burros”.
Não havia recinto de recreio. Entre dois toques de campainha, amontoávamo-nos como podíamos, para jogar a sameira. E os calmeirões da quarta classe abriam caminho a pontapé, para criar espaço de jogar o pião.
A diretora morava no último andar. Recordo a mesa das reuniões, que tinha uma perna mais curta apoiada num maço de três enormes livros (talvez vos venha a falar dessa mesa e dos livros que a calçavam). Também recordo bem a já velha caixa métrica, o cheiro da tinta, o tinteiro, a caneta de aparo, o papel mata-borrão… mas, apesar do estatuo especial, eu carregava demasiado na caneta de aparo, borrava a escrita e levava tapa por este e outros motivos, que eu não conseguia identificar.
Por já saber ler, recordo o período da alfabetização como um imenso sacrifício, apenas mitigado pelos momentos em que ajudava um amigo. Ele ficava sentado, sozinho, numa carteira do fundo da sala de aula. E o professor intimidava qualquer um que se atrevesse a fazer-lhe companhia.
O Jorge era marginalizado apenas porque o seu pai era crente de uma outra religião e dissidente da Ditadura. Cedo compreendi o que era exclusão. Esse meu amigo era continuamente humilhado, dentro e fora da sala de aula. Certo dia, sentei-me ao lado dele, para o ajudar na leitura. E, num silêncio solidário, ali fiquei, até ao último dia de escola.
Esse gesto me valeu uma surra do professor Vasconcelos, no primeiro dia de desobediência. Creio ter sido esse gesto o primeiro assomo de contestação de injustiças. Creio que, nesse dia, tenha dado o primeiro passo da minha aprendizagem da solidariedade.
Por: José Pacheco
354total visits,6visits today