Amadora, 30 de junho de 2040
Não se creia que o dilema vivido pelo Filipe era um caso isolado, ou de origem recente. Já na antiguidade clássica, sábios se manifestavam a propósito: “Aquele a quem a palavra não educar, também o pau não educará” (Sócrates); “Não eduques as crianças nas várias disciplinas recorrendo à força, mas como se fosse um jogo, para que também possas observar melhor qual a disposição natural de cada um” (Platão). Mas, um jornal do século XIX, quase contemporâneo do nascimento da escola da aula, assim rezava:
“A câmara decretou a proibição absoluta dos castigos corporais, quando o regulamento do Governo os permite. O regulamento autoriza os mestres a aplicarem um pequeno castigo, paternalmente dado e sem rancor. O Governo com o seu regulamento dá os meios para se conseguirem os fins, pugna pelo bom carácter civil, moral, religioso e literário do ensino. A câmara, autorizando a anarquia com as suas teorias regulamentares, destrui o carácter do ensino. Ora o que sucede? O professor esfalfa-se para restabelecer a ordem e não o consegue, porque a onda de insubordinação cresce.
Era assim, no tempo em que as câmaras mandavam. E era assim, em 2020. Os desgovernantes da educação acreditavam que o adestramento definia a educação. Não sabiam que a educação é incompatível com uma organização autoritária da vida.
Nos anos vinte deste século, a escola da ensinagem mantinha rituais disciplinares dos anos vinte do século XIX. A indisciplina era naturalizada, jovens eram expulsos de uma escolas, que era concebida como formalidade social. Poucos a viam como incubadora de uma nova ordem social. As escolas erguiam e reforçavam muros, defendendo-se da comunidade. Promovia-se o reforço policial, escolas eram entregues à guarda de militares.
A obsessão uniformizadora e seletiva da escola vinha sendo questionada por “especialistas”. Porém, esses”especialistas” não faziam ideia alguma de como contribuir para a saída do caos. E induziam os políticos a acrescentar camadas de tinta nova em velhos palimpsestos disciplinares.
No final do mês de junho dese fatídico 2020, a sociedade brasileira sofria efeitos colaterais da escola da ensinagem. E reagia com vigilância e punição. Quase sessenta mil brasileiros haviam sucumbido à covi-19. Os europeus abriam as suas portas ao turismo, mas decidiam se manter fechados para turistas brasileiros. Mais de vinte mil soldados ajudavam no combate à pandemia. Além da descontaminação de rodoviárias, metrôs e hospitais, atuavam na distribuição de medicamentos, no deslocamento de pacientes e na montagem de hospitais de campanha. Mas outros militares também se preparavam para “atuar em outra frente, para indisciplina social”, acaso a propagação da doença descambasse para situações extremadas, impulsionadas pelo desemprego e pelo crescimento da pobreza.
Como vedes, queridos netos, a escola da aula continuava a reproduzir um modelo escolar e social de há dois séculos. E, há milénios, Pitágoras já nos havia dito que, educando as crianças, não seria preciso castigar os homens. A escola da ensinagem estava ancorada em propostas teóricas da filosofia do século XVII. Insistia em ensinar todos como se fossem um só, forçando ao isolamento social as crianças com idade superior a cinco anos. Vigiava, punia e, em 2020, induzia à evasão escolar cerca de cinco milhões de alunos. Muitos se transformaram em “marginais” quando lhes foram negadas oportunidades por uma sociedade desigual, injusta.
Por mais estranha que vos possa parecer, era essa a situação… no tempo da velha escola.
Por: José Pacheco
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