Castro Marim, 5 de julho de 2040
Querido Marcos,
Sempre vi em ti a sensibilidade de um designer, o espírito criativo de um inovador, talento para recriar uma tecnologia social, que possibilitasse a emergência de uma nova construção social de aprendizagem. Partirei tranquilo, por saber que aquilo que o vosso avô não foi capaz de concretizar, sê-lo-á pelas mãos de novos construtores de futuros.
O Pássaro Encantado (de que te falei numa outra carta), dizia que a verdade não é uma só, nem é só nossa, vivendo, sob múltiplas formas, em todas as pessoas… e em todos os pássaros. Nos livros, que vos dediquei, já vai para quarenta anos – o “Para Alice, com Amor” e o “Para os filhos dos filhos dos nossos filhos” – recorri a personificações, para interpelar verdades imutáveis e para vos descrever a escola do início do século XXI. Se pretendesse descrever a escola de hoje, de modo que os filhos dos filhos dos vossos filhos me entendessem, poderia esboçar algo assim:
Lá pelo século XVII, um país que já nem existe, chamado Prússia, precisava de um exército forte, para o unificar. E o seu imperador decretou “o ensino militar obrigatório aos cinco anos”. As crianças foram confinadas em casernas a que deram o nome de escolas.
A escola nasceu militar, assente numa rígida disciplina e num regime autoritário usuário de severas punições. O vírus originário da Prússia – vamos chamar-lhe instru-XVIII – transformou-se numa epidemia, que afetou outros estados-nação europeus. A França dos iluministas e dos conventos o gestou. A Inglaterra das usinas da Primeira Revolução Industrial lhe deu forma e o vírus evoluiu para uma nova estirpe – o instru-XIX. A epidemia prussiana virara trágica pandemia.
Entrados no século XX, numa América do Sul imersa no analfabetismo, um general (mais um militar) de nome Bolívar “importou” o Método Mútuo de Lancaster. E, embora animado das melhores intenções, Pedro II (mais um imperador) expôs o Brasil à mortífera pandemia.
Ao longo de duzentos anos, milhões de vidas jovens foram destruídas pela escola instrucionista, num holocausto educacional, que pedagogos escolanovistas denunciaram. Chamaram à escola da aula “invenção do diabo“, mas não lograram suster a peste. A pandemia chegou aos anos vinte deste século sob a forma de um “instru-19”, um vírus mais letal do que o seu congênere covid-19.
Urgia produzir uma vacina, que protegesse os jovens da pandemia instrucionista.
A produção da vacina dependia da capacidade de diálogo entre diferentes concepções e práticas educacionais. Porém, a herança autoritária prussiana obstava a que os desgovernantes da educação escutassem argumentos dissonantes dos seus.
Causava-me perturbação o fato de, em meados da pandemia de 2020, professores e desgovernantes da educação propusessem o “regresso às aulas”, voltando a expor jovens seres humanos ao assassino “instru-19”, nesse tempo enfeitado de projetinhos híbridos e outros paliativos do assassino modelo da instrução.
Na semana em que desvairados propunham o “regesso às aulas”, enquanto contemplava a Lua de Curitiba, o meu amigo e educador-poeta Valdo partilhava o seu sentir:
Semana triste, que nos desafia ainda mais a continuarmos e persistirmos na construção de outros amanhãs. Muitas forças estão a nos inspirar e a nos impulsionar, mesmo com ventos contrários e com as articulações de forças do atraso, que tudo fazem para dificultar ainda mais a caminhada emancipatória.
A esperança não é a última a morrer, ela não morre. Esperancemos.
Por: José Pacheco
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