Nova Mutum, 3 de setembro de 2040

Há muitos anos, quando ouvia alguém referir-se com desdém a uma qualquer escola ou a classificar um qualquer professor de “lírico” ou de “lunático” (só para referir as mais gentis e eufemísticas classificações), eu inquiria, discretamente e sem manifestar excessiva curiosidade (para não levantar suspeitas), de que escola ou professor se tratava.

Recolhida uma das informações, logo preparei a viagem. Ávido de prodígios, pesquisador de almas inquietas, fui em demanda da professora Lúcia e da sua tão comentada escola escondida num vale de Trás-os-Montes. Depois de muitas voltas por estreitas estradas, estava quase decidido a voltar para trás, quando deparei com uma placa indicando a proximidade da aldeia. Segui por um caminho de terra onde mal passava um carro. O receio de encontrar alguma viatura em sentido contrário foi-se esvaindo, talvez por efeito do sossegado silêncio entre montanhas, pontuado pelo chilrear dos pássaros. Ia tão distraído que, no desfazer de uma curva, quase choquei com uns cornos fora de mão.

“Ei! Ei, Bonita! Arreda!” – gritou uma velhinha, de aguilhão em punho, empurrando a vaca para o rego de água que bordejava o caminho.

Pedi desculpa pela perturbação gerada e perguntei à senhora se conhecia a escola da Lucia e se ainda ficava longe dali.

“Não senhor, meu senhor, é mesmo aqui pertinho. Não tem nada que enganar. O senhor vai por aqui abaixo, sempre, sempre, sempre neste correr. Quando der com a casa do meu filho, meta a descer para o lado esquerdo. A escola é logo ali à beirinha.”

Retomei a marcha com o pressentimento de me haver perdido, mas a desconfiança desvaneceu-se ao deparar com “a casa do filho”. Era a única, ao fundo daquele caminho. E lá estava a azinhaga – como dissera a velhinha – envolta numa latada, uma espécie de túnel, ao fundo do qual vi “a luz”: a escola!

Fui-me aproximando, devagarinho. A singela construção iluminava-se com o riso das crianças. E a gélida sala de aula amornava-se com o calor de gestos sábios, transbordando doce ternura. Lá estava a Lúcia, à conversa com um homem de rosto calcinado e rude, mãos calejadas, pés descalços e voz suave. Pedi e fui autorizado a escutar a conversa. Enquanto derramava saberes populares, o lavrador não largou as mãos da enxada e com ela se foi, depois de muito falar sobre o que creio ter identificado como “meteorologia e medicina popular”. A Lúcia e o lavrador conversavam sobre um… projeto.

Havia mais pedagogia naquele lugar ermo do que em todos os compêndios que eu já tinha lido. Em escassas horas, aprendi mais das crianças, dos pais e dos professores do que nos cursos de formação. Compreendi por que razão os auleiros recorriam a uma abundante adjetivação – “líricos”, “lunáticos”, “utópicos” e outros epítetos bem menos lisonjeiros… – quando se referiam a professores como a minha amiga Lúcia. E insisti numa incessante busca de razões para me manter na profissão que escolhera. Aos “utópicos” eu era devedor de quase tudo o que de professor pudesse ser.

Voltei da escolinha da minha amiga Lúcia com mais alento e vontade de não desistir. Voltei mais consciente do muito que teria de me melhorar e do quanto teria de aperfeiçoar a minha prática. Voltei à Escola da Ponte com uma “fé pedagógica” mais fortalecida. Porque, à semelhança dos magos que se deixaram guiar por uma estrela até uma claridade que rompia as trevas de uma gruta ou casebre, eu mantivera a crença de encontrar “a casa de um filho”, marco de referência de uma escola que irradiava uma luz perturbadora, por entre as trevas em que o sistema estava imerso.

 

 

 

Por: José Pacheco