Valinhos, 15 de setembro de 2040
Rubem era um homem que gostava de ipês. Se ainda estivesse entre nós, acenderíamos, hoje, cento e sete velas, para que ele se “desfizesse dos anos”.
Há quarenta anos, o meu amigo foi até à Ponte. E a “Escola com que Sempre Sonhei”, dava conta de uma prazerosa surpresa:
“Era uma sala enorme, sem divisões, cheia de mesinhas baixas, próprias para as crianças. As crianças trabalhavam nos seus projetos, cada uma de uma forma. Moviam-se algumas pela sala, na maior ordem, tranquilamente. Ninguém falava em voz alta. Nem isso se ouvia. Notei, entre as crianças, algumas com síndrome de Down, que também trabalhavam. As professoras estavam com as crianças, em algumas mesas, e se moviam quando necessário. Nenhum pedido de silêncio. Nenhum pedido de atenção. Não era necessário”.
A surpresa do Rubem, ao deparar com um contexto de educação cidadã, foi idêntica a uma desagradável surpresa que tive, quando, no Conselho Nacional de Educação, fui incumbido de elaborar um “Parecer” sobre uma “Proposta de Lei”.
Tratava-se de uma tentativa de reorganização curricular. O ministério propunha a introdução de uma disciplina de “educação para a cidadania”. Se a memória não me falha, creio que a “cidadania” seria ensinada em duas aulas semanais. Como se a educação cidadã não pudesse acontecer na aprendizagem da matemática, da música, ou das ciências naturais! Como se pudesse acontecer em duas horas de aula e não nas vinte e quatro horas de cada dia. Como se, numa sala de aula, se pudesse alcançar cidadania plena.
A aula, hoje felizmente erradicada, era um instrumento de manipulação, de controle. A escola da aula reproduzia um modelo de sociedade pautado numa cidadania heteronímica. Quando o professor planejava uma aula, igual para todos, impedia o aluno de aprender a planejar-se, a saber gerir o tempo, os espaços, a sua vida. Apesar de inscrita no projeto das escolas – que a maioria dos professores nunca leu! – a autonomia era cerceada pelo instrucionismo.
O Rubem deparou com situações de cidadania plena. Na Ponte, não se educava para a cidadania, educávamo-nos no exercício de cidadania, numa liberdade responsável, onde cada aprendiz de liberdade era individualmente responsável pelos atos do seu coletivo.
Rubem narra episódios, que ilustram o reconhecimento do outro:
“Encontrei quadros de avisos: “Tenho necessidade de ajuda em…”. Em outro, a frase: ” Posso ajudar”. Qualquer criança com dificuldades em qualquer assunto coloca ali o assunto e o seu nome. Outro colega, vendo o pedido, vai ajudá-la. Assim, vai-se se formando uma rede de relações de ajuda.
Numa mesa, uma menina escrevia e consultava o dicionário. Agachei-me para conversar com ela.
Você está procurando no dicionário uma palavra que você não sabe?
Não, eu sei o sentido da palavra. Mas estou a escrever um texto e usei uma palavra que, penso, eles não conhecem. Como eles ainda não sabem a ordem alfabética e não podem consultar o dicionário, estou a escrever um pequeno dicionário ao pé da página do meu texto para que eles o compreendam.
Na Escola da Ponte, a ética perpassava silenciosamente, sem explicações, as relações, naquela sala imensa. Mais do que aprender saberes, as crianças estão a aprender valores”.
A aprendizagem é empreendimento comunitário, expressão de solidariedade. O Rubem viu que crianças aprendentes ajudavam outras crianças a aprender. Identificou mais um motivo de a Ponte ter extinguido a ensinagem em sala de aula. Pois, exatamente no dia 15 de setembro, mas de 2020, muitas salas de aula foram extintas. Disso vos falarei mais adiante.
Por: José Pacheco
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