Várzea de Palma, 21 de setembro de 2040
“Chegamos, então, ao pilar mais evidentemente erodido do sistema escolar pela pandemia: a organização dos tempos e espaços. Ela expôs com clareza o caráter massificador da estrutura baseada em salas de aula com 30, 40 ou mais estudantes em prédios que reúnem centenas deles. Agora todos chamam isso de aglomeração. Nada menos propício aos processos educativos”.
A Helena “pregava no deserto”. Mas, tentarei explicar-vos, de modo que vós possais entender absurdas situações de há vinte anos.
Por setembro, alguém me disse que um diretor de agrupamento – “agrupamentos” eram burocráticos ajuntamentos de escolas – andava de fita métrica na mão, a falar de contraturnos, bolhas de segurança e centímetros. Pobre diretor!
Enquanto isso acontecia, numa escola próxima, outro diretor lidava com um protesto de pais contra uma “turma mista”, uma turma constituída por alunos do primeiro e do segundo ano. Nesse tempo, as crianças eram repartidas por cartesianos segmentos a que davam o nome de “ano de escolaridade” – Vá-se lá saber por quê!
Os pais dos alunos barraram a entrada da escola com troncos de árvores. E, num dos cartazes afixados no gradeamento da escola, lia-se: “Queremos distanciamento físico”. Talvez porque o distanciamento psicológico já existisse… Na sala de aula, precários vínculos coabitavam com um vazio constitutivo imposto pela ensinagem frontal anônima. Em outro cartaz, os pais escreveram: “Porquê duas crianças a partilhar a mesma mesa quando temos uma sala vazia?”
Nesse tempo, os alunos eram armazenados, duzentos dias por ano, em salas “vazias” de respeito pelo direito de aprender. Mas muitos pais e professores “achavam” que, se muitos alunos não aprendessem, isso era… “normal”.
“Nunca houve turmas mistas, vai haver logo agora em tempos de covid e quando há uma sala vazia?”, insurgiu-se um dos revoltados pais.
A DGEstE – uma estrutura burocrática e autoritária dessa época – fez valer a sua prerrogativa: “Por decisão superior, não será considerada a constituição de nova turma”. E mais não disse.
Por inverosímil que possa parecer, queridos netos, as instâncias de poder eram surdas a argumentos de natureza científica. E a escola da aula reproduzia um modelo social gerador de exclusão e “naturais” hierarquizações. Questionava-se o distanciamento físico, enquanto se ostracizava distanciamentos sociais: escolas privadas versus escolas ditas públicas; condomínios particulares versus bairros periféricos; classe executiva versus classe económica. Pela sua natureza, a escola da aula contribuía para agudizar os efeitos de uma globalização neoliberal, que remetia o ser humano para bolhas sociais feitas de ostentação, miséria e solidão.
Retomemos o pertinente artigo da Helena:
Precisamos de uma estrutura que garanta a interação pessoal educador-estudante, o acompanhamento individualizado das aprendizagens e, ao mesmo tempo, a experiência coletiva da construção do bem comum, do diálogo, da convivência, do cuidado com o outro, da diversidade. Se os prédios e a velha estrutura chamada enturmação não servem para isso, utilizemos todos os recursos disponíveis, inclusive os tecnológicos que agora os professores conhecem”.
O “agora” da Helena era o de há vinte anos. Naquele tempo, insurgia-me por ver maltratar a infância. À distância de duas décadas, já consigo narrar fatos de antanho, sem quase deixar transparecer a revolta, apenas com resquícios de indignação. Parece que a velhice nos devolve a serenidade, que, quando novos, nos falta.
Por: José Pacheco
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