Icaraí de Minas, 30 de setembro de 2040
Netos queridos, trago-vos duas estórias, que nos falam de amor e de…cabelo.
Nos idos de setenta, aquela era uma escola de deserdados. Longe dela, recordo o momento em que o projeto tomou novos e irreversíveis rumos. Muitos alunos chegavam à escola sujos, com fome ou com excesso de vinho, com a cabeça cheia de preocupações e de… piolhos.
O meu filho André foi um dos primeiros alunos oriundos de famílias ditas “remediadas”. Outros foram chegando, porque muitos pais começaram a ver aquela escola como o lugar apropriado para a educação dos seus filhos. O André recebeu a sua dose de parasitas capilares, num tempo em que aquela escola pública deixou de ser uma escola dos pobres, para ser uma escola de todos.
Experimentamos vários tratamentos, retiramos milhares de lêndeas do couro cabeludo, enchemos de pó as cabecinhas dos nossos alunos, até à chegada de alunos provindos de famílias de maiores recursos.
Se algumas crianças traziam a cabeça cheia de piolhos, outras traziam-na cheia de gel. Esse produto estava na moda, nos idos de setenta. O gel grudava no cabelo, dando-lhe um aspeto reluzente. No trabalho de grupo, os parasitas tinham livre circulação e seguiam o seu instinto, passando de cabeça para cabeça. Era, porém, uma via suicida, pois os bichinhos acabavam presos no gel, liquidados.
Os atalhos tradicionais nem sempre nos conduzem a destinos predeterminados e o trabalho de pares, que havíamos introduzido no quotidiano da escola havia provado essa tese. Os piolhos que o digam! Juntou-se o gel com o piolho e o piolho com gel, num capilar diálogo entre diferentes estatutos sociais, diferentes culturas, tornando o ser humano… mais humano. Esse desiderato poderia ser uma utopia? Talvez não, como iremos ver.
Há quem creia que o bullying foi inventado neste século, mas ele era cruel realidade já em meados do século XX. Muitas escolas eram espaços de desumanização. O Rui sofria de leucemia. A quimioterapia fizera desaparecer todo o seu cabelo. Usava um boné, para disfarçar a calvície. Brincando no pátio da escola, o boné voou, caiu no chão. Logo sentiu o escárnio de colegas:
“Careca feio! Careca feio!”
Tanto bastou para não querer voltar àquela escola. Meses a fio, as sessões de tratamento tinham operado um enorme desgaste emocional. E, a partir desse dia, nem sequer saía do seu quarto, chorava, dizia querer morrer.
A mãe do Rui buscou ajuda na nossa escola e foi ajudada. Diariamente, uma professora passou a visitar o Rui, no seu quarto, conversando, devolvendo-lhe vontade de viver… e de aprender. Até ao dia em que ele quis conhecer de perto a nossa escola e conviver com os seus colegas. Até então, apenas deles ouvira falar a professora. Chegou, rosto triste, fechado. Estudou no seu grupo de projeto. Brincou, correu e o boné voou, caiu ao chão.
Apressou-se a apanhar o protetor adereço, olhando em redor, receoso da reação dos seus colegas de brincadeira. Não enfrentou novo coro de “Careca feio! Careca feio!” e a brincadeira continuou. No dia seguinte, quando chegou à escola, viu que todos os seus amigos tinham rapado o cabelo. Estavam tão carecas como ele.
A leucemia é uma doença cruel. O Rui passou por um transplante de medula, que foi rejeitado. Foi definhando, amenizando as dores com a alegria do saber cuidar dos seus companheiros. Faleceu rodeado do carinho, que lhe votavam seus colegas e professores. Passou a viver na memória de quem lhe quis bem, porque um ser humano não morre quando o coração para. Morremos subitamente, quando deixamos de amar. Morremos lentamente, quando deixamos de ser amados.
Por: José Pacheco
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