Canoeiros, 5 de outubro de 2040
Nos idos de oitenta, o João, um pai atento aos malefícios da velha escola matriculou o seu filho numa escola, que adotara a chamada “Pedagogia Freinet”. Um amigo perguntou:
“Coitado! O teu filho tem dificuldades de aprendizagem?”
O amigo não sabia que, se houvesse “dificuldades de aprendizagem” nos alunos, também se teria de admitir haver “dificuldades de ensinagem” nos professores. Foi, sobretudo, devido a uma “deficiência” que Freinet se libertou de atavismos. Durante a Primeira Guerra Mundial, fora ferido nos pulmões. Compreendeu que os seus problemas respiratórios não lhe permitiriam “dar aula”. Por lhe ser difícil respirar dentro da sala, foi com os alunos para fora dela. Arejou a escola e provocou correntes de ar novo em muitas outras escolas. Imaginemos o que aconteceria, se muitos professores padecessem de problemas pulmonares, ou não pudessem utilizar as cordas vocais!
Quatro séculos separam o Freinet moderno do Michelangelo renascentista. É assim que recordo uma metáfora que li num livro do Mário. Perguntaram a Michelangelo como conseguira fazer a estátua de David, um maravilhoso mármore de cinco metros de altura. Foi fácil – respondeu o gênio de Florença – Olhei para o bloco de mármore e imaginei o David dentro dele. Depois, foi só retirar tudo o que não era David.
Isso mesmo! Era preciso “retirar do mármore aquilo que não era David”. Era preciso libertar a escola daquilo que não fazia sentido.
Quase contemporâneo de Michelangelo, Comenius concebeu uma teoria ainda hoje considerada “avançada” e advogava uma educação em ambiente escolar arejado. Mas, durante mais de quatro séculos, os alunos foram armazenados em “estufas calafetadas”, alinhados em classes (pretensamente) homogéneas e tratados como se fossem um só.
Havia escolas de salas com porta de fechar, cujo cheiro a mofo já ninguém sentia – eram as ditas “salas de aula normal”. Sempre que eu deparava com esse dístico afixado na porta das salas “normais”, eu perguntava: Cadê as salas anormais?
Em outras escolas, as salas tinham portas de abrir. Eram as tais “escolas anormais”. Portas fechadas eram reveladoras de uma cultura de autossuficiência. Mas as portas que fechavam a caixa negra da sala de aula, também poderiam ser portas abertas para o ar livre. Restava optar.
Quando escrevi que os educadores precisavam mais de interrogações do que de certezas e que, dentro de uma aula, nada de útil se aprendia, houve quem reagisse com virulência. A recusa de agir resultava da recusa de ver e de pensar.
Galileu – como Michelangelo, homem do Renascimento – respirou o ar fétido dos subterrâneos da Inquisição, quando ousou desafiar os preconceitos da sua época. Com lentes, que ele mesmo fabricava, Galileu atravessou os ares com um novo olhar, contrariando aqueles que defendiam as teses de Aristóteles e Ptolomeu.
As ideias arejadas são peregrinas, permitem que a humanidade reoriente o seu complexo percurso. No século passado, houve professores que ousaram interrogar-se: por que há salas de aula? Ninguém sabia responder. Olhos questionadores não encontravam nos livros das ciências da educação qualquer fundamentação para que houvesse… aula.
Em 2020, era grande o meu cansaço perante a sucessão de notícias que davam conta do descalabro da educação, dos trágicos efeitos de uma escola sem sentido, sem que se denunciasse as causas. O meu cansaço advinha de ter de escrever para denunciar, quando desejaria mais anunciar. Acreditava que, algum dia, findaria o drama de professores certos trabalhando de modo errado. E esse dia chegou.
Por: José Pacheco
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