Morro Grande, 8 de outubro de 2040
Alheei-me do frenético trânsito de São Paulo, para ouvir contar estórias. O motorista do táxi falou de fome e abandono, da sua infância no Nordeste. Sendo o mais velho de dez irmãos, foi empurrado da escola para o trabalho duro. Já adulto, aprendeu a ler, tirando dúvidas com os que partilhavam o jornal do botequim do bairro.
Até aqui, nada de novo, se pensarmos ser esta estória igual a tantas outras estórias de exclusão de negros, de negros quase-brancos e de brancos quase-negros. Mas, a certa altura do monólogo, parámos num semáforo. Um bando de meninos de rua mostrava habilidades malabaristas. O motorista comentou, num brasileiro que adapto para português de Portugal, com prejuízo da perda do ritmo e da doçura da fala:
“Veja o senhor ao que chegou este país! Estes meninos não deveriam estar na escola?”
Compreendi que aquela era uma pergunta retórica, pois nem sequer tive tempo para ensaiar a resposta.
“Mas eu imagino que tenham razões para não ir. E acredite que não será só por necessidade. Eles não gostam mesmo de ir à escola. A escola não lhes diz nada. Eu sei que é assim, porque o mesmo se passou comigo. Quando era da idade deles, empurraram-me para fora da escola. Mas eu também quis sair. Aprendi a ler por necessidade. Não foi a escola que me ensinou”.
E foi enunciando autores seus preferidos. Gosto eclético, que ia da literatura de cordel aos clássicos. Até que atirou nova pergunta retórica:
“O senhor sabe o que faz a minha mulher? Ela é professora! Quando nos casámos, ela quis tirar um curso. Só tinha um problema: ela não gostava de ler. Eu fiz um trato com ela. Ela passava a fazer as contas do meu serviço e eu ajudava-a a tirar o curso”.
Eu ia perguntar como tinha sido concretizado o contrato, mas não foi preciso, que a resposta sem pergunta veio de imediato:
“A minha mulher trazia os livros lá da faculdade, para eu ler. À noite, eu lia os livros. E explicava à minha mulher o que vinha nos livros. Ela fez as provas todas e ficou aprovada. Até recebeu um diploma! E, assim, fez o curso de professora”.
Esbocei um sorriso, entre o espanto e a admiração. E ele reatou a conversa, falando de autores que havia lido: Freinet, Montessori, Dewey, Piaget, Anísio…
Por estarmos a chegar ao nosso destino, rematou a conversa:
“Já vi que o senhor não deve ser da educação e para o senhor deve ser difícil compreender o que lhe vou dizer, porque são coisas da pedagogia… entendeu?”
Não retorqui. Eu deveria ter aspeto de “quem não era da educação”… e ele concluiu, dizendo:
“Quando li os livros do Paulo Freire, que é um educador do meu país de que o senhor talvez já tenha ouvido falar, é que eu entendi o mal que algumas escolas fazem a muitas crianças. E até me deu vontade de chorar”.
Talvez nunca aquele motorista venha a saber o quanto me comoveu a sua estória. Talvez nunca possa manifestar-lhe a minha gratidão, porque não o pude fazer, naquele momento. O nó que eu senti na garganta ameaçava desatar-se.
Volvidos trinta anos, quando a barca de sonhos chega ao seu último porto e se apronta para a derradeira viagem, começo a coabitar com um mistério a que não dou nome, algo cuja existência a minha razão sempre rejeitou. Naquele tempo, me perguntavam por que razão escolhi o Brasil como mátria, nos braços da qual partirei, creio que em breve. Respondia que foi nas terras do sul que encontrei resposta para uma pergunta peregrina: Será verdade que andam anjos pela Terra?
(Podereis encontrar esta estória no meu livrinho “Para os filhos dos filhos dos nossos filhos”. Com essa estória, a minha amiga Janaína compôs o último quadro de uma bela peça de teatro.)
Por: José Pacheco
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