Júlio de Castilhos, 24 de novembro de 2040

Em meados de novembro de 2020, uma escola francesa “viralizou” nas redes sociais, após fazer um pedido inusitado aos pais: que não arremessassem os filhos pelo portão.

A diretora da escola queixava-se de que havia pais que chegavam depois do sinal e literalmente “jogavam os filhos” por cima do portão. E a escola optou por fazer o alerta, afixar cartazes, como aquele que vos envio junto desta cartinha. O aviso lembrava que a entrada nas dependências do colégio ia das dez às quinze horas.

Poder-se-ia pôr em causa a existência de horário de entrada. Poder-se-ia questionar os atrasos e apelar à pontualidade dos pais das crianças, até mesmo se poderia perguntar por que existia um… portão. Seriam perguntas inúteis, porque se convencionara que uma escola deveria ter muros, portão e horário de recolher. A escola era um redil, onde as famílias depositavam crianças, durante o tempo de trabalho.

Quando li essa notícia, lembrei-me do filme “Brutti, sporchi e cattivi” dirigido por Ettore Scola, vencedor do Festival de Cannes. O filme mostrava o quotidiano de uma favela de Roma dos anos sessenta, onde morava uma família com dez filhos e outros parentes, num barraco de apenas três cômodos. O filme terminava com uma cena protagonizada por uma jovem grávida, vítima de incesto, metendo crianças dentro de uma cerca fechada a cadeado. A escola era considerada um depósito de crianças, um antro de adestramento, ou o “serviço militar obrigatório aos seis anos”, como diria o amigo Tião. Naquela escola francesa, como em todas as escolas instrucionistas, jogar um filho sobre o portão era livrar-se de um estorvo.

Podereis considerar que estou a ser excessivo no comentário. Talvez. A verdade é que a escola desse tempo tinha nascido cárcere, inspirada nas linhas de produção em “série” da Primeira Revolução Industrial. Impunha horário-padrão, ritmos uniformes e intervalos para fazer xixi. Quem fosse jogado por cima do portão, ou jogado no redil ainda com o portão aberto, se, nos mínimos gestos, reagisse ao controle do corpo, era rotulado de indisciplinado. Mas, havia quem não se deixasse cronometrar, quem se evadisse e nunca mais voltasse. Também havia quem se evadisse, dentro da sala de aula, “desligado da lição”, com ou sem fones nos ouvidos.

Quem tivesse conhecimento profundo de História da Educação – o que não era o caso de ministros, nem de agentes da administração educacional – saberia que a escola instrucionista teve por modelos: a usina inglesa da Primeira Revolução Industrial, o convento francês, o exército da Prússia, as casernas e as prisões do século XIX. Os edifícios-prisões destinados à instrução dos jovens eram rodeados de muros altos, pesados portões e grossas grades.

Dentro desses bunkers, diretores bovinamente obedientes a “superiores hierárquicos”, faziam cumprir “regulamentos disciplinares” e nas absurdas escolas cívico militares, até havia “ordem unida” e “continência”. Quando foram banidos os castigos corporais, manteve-se o exercício de violência simbólica. Com maior ou menor suavidade, três estados-nação europeus enclausuraram, uniformizaram, “disciplinaram” milhões de jovens.

O autoritarismo da administração educacional teve trágicas consequências. Até à década de trinta, a sua criminosa teimosia apenas gerou adestramento e propagou ignorância. Na escola da instrução, não acontecia democratização. Através de regras impostas, não se promoveu cidadania. Nas escolas dos idos de vinte instalou-se o autoritarismo e a libertinagem.

Por: José Pacheco