Bagé, 25 de novembro de 2040
Atento à importância de que se revestia a seleção de manuais escolares e consciente da diversidade e quantidade de critérios a considerar na sua análise, o professor embrenhou-se na leitura atenta dos manuais que as editoras, generosa e prodigamente, haviam feito chegar à sua escola.
Numa espécie de viagem ao passado, sentiu-se transportado até aos anos cinquenta, criança de tenra idade, enfileirada com outras crianças, sentadas em velhas carteiras, dedo apontado para o “livro de leitura”, entoando em coro melopeias sem sentido,
“A de águia, e de égua, i de igreja, o de ovos, u de uvas…”
Concluída a análise dos “manuais aprovados” para o primeiro ano, extraiu algumas frases de elevado gabarito intelectual, que as suas criancinhas deveriam repetir até à exaustão. “A tia tapa o pote” era a frase campeã das citações, quase a par com a célebre “a vaca dá leite”. Sentiu-se regressado ao país rural da sua salazarista infância perante frases como: “o Vilela leva a vaca à vila”, “o Vilela veio da vila a cavalo”, “o avô vai à vila a pé”, “o vovô viu a uva”.
Através dos manuais didáticos, ficou também a conhecer o que preenche o quotidiano dos alunos das outras escolas:
“É dia de aula e a Adélia pula”.
O texto não informava se a Adélia pulava durante a aula de educação físico-motora, ou se o pulo teria sido dado no recreio, durante o intervalo. Mais clara e menos omissa era a frase “Na aula, a Sónia acabou tudo: a soma, a cópia e o ditado. Tocou a sineta. A Sónia saiu da aula”, pois parecia refletir uma notória assunção de “novas pedagogias”.
Outras frases confirmavam a existência de músicos precoces entre os alunos da “primeira classe”: “O Paulo lê a pauta”, enquanto “a avó toca violino”, “o avô toca viola” e “a tia toca corneta”. Por que se preocupavam os teóricos com a educação musical, se em cada família havia um potencial Mozart?
Os manuais também sugeriam técnicas avançadas, que deveriam ser estudadas pelos bombeiros:
“Caiu uma gota de água na mata e apagou o lume”.
E num esforço de proteção da língua materna relativamente à invasão de estrangeirismos, os manuais diziam-nos, no mais puro português, que:
“O xerife comeu muito xuxu, tau, tau, tau, toca o teu berimbau”, “a Pepa papou”, “papa tu do Dadá”, “o Jugu não viu o zebú.”.
Por sua vez, os personagens que atravessavam estas surrealistas narrativas foram batizados com nomes usuais em qualquer conservatória do registo civil: “Ucha, Tutu, Zuzu, Dídio, Lalá, Nídia, Ulema, Dálio, Dedé, Xodó”, etc.
Reunindo textos tão claros como rigorosos, os manuais davam notícia de prodigiosas acrobacias:
“A bola pula e o Lito papa a lula”, “o Paulo pula da mota”, “a Lili papa a lua”, “o Óscar viu os ovos e abriu os olhos”, “eu pulo e leio”.
Os manuais também traduziam preocupação com o desenvolvimento cognitivo, não descurando o desenvolvimento atitudinal. Selecionei alguns exemplos de transmissão de modelos de respeito e amor ao próximo:
“O miau é mau” e “o mémé é tão mau”, “o Catita deu uma patada ao cão”, “o Pepe bateu com o pé no pé do pipi”, e “a Belita bateu à tia”.
Perante sublimes manifestações de pacifismo militante, os professores achavam estranho que os alunos continuassem a agredir-se.
Nesse tempo, o “método fônico” era hegemônico. Embora vos seja difícil acreditar, era assim que se “aprendia a ler”, no princípio deste século. Alguém, que não professores calejados no uso dos manuais, se recusaria acreditar que milhares de crianças fossem forçadas a decorar frases a roçar a imbecilidade. Face a essas pérolas da literatura, o Saramago agitava-se no túmulo, roído de inveja.
Por: José Pacheco
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