Nova Bassano, 11 de dezembro de 2040
Encontrei numa velha pen drive um ficheiro com várias notícias de uma mesma semana do dezembro de 2020.
Na rotineira violência da favela, o ajudante de pedreiro Alexsandro, chorava a morte da sua filha Emily e da sua sobrinha Rebeca:
“Tô enterrando a minha filha, que não viveu nada”.
As duas crianças foram mortas em tiroteio na Baixada Fluminense. Emily, de quatro anos e Rebeca, de 7, brincavam na porta de casa quando foram atingidas por balas. Foram sepultadas, uma ao lado da outra. Alexsandro fechou o túmulo com as próprias mãos.
Na chamada “estrada da morte”, que tantas vezes percorri com o credo na boca, um ônibus não autorizado para transporte de passageiros caiu de um viaduto. Morreram vinte pessoas.
Numa sociedade doente, desgovernada, cativa da inversão de valores, reinava o caos da incúria e da má educação. Escasseava o exercício da cidadania.
Nas escolas, havia aulas de “educação para a cidadania”, quando se deveria educar no exercício de uma cidadania plena. As escolas cívico-militares praticavam um civismo de caserna. A cidadania instrucionista causava a destruição da Amazônia. A cidadania ensinada na universidade não obstava a que estudantes estuprassem colegas, durante o trote. Havia projetos de “educação cidadã” financeira, para o trânsito, para a saúde. Mas, a inadimplência se generalizava, as estradas eram cemitérios e a covid-19 voltava na segunda vaga. E uma “cidadania armamentista” contribuíra para o assassinato da Emily e da Rebeca.
No início deste século, o meu amigo António Nóvoa redigiu um artigo com o título “A educação cívica de António Sérgio vista a partir da Escola da Ponte (ou vice-versa)”. Com uma dedicatória: “Para todos os que têm feito e continuarão a fazer a Escola da Ponte”. Eis o que o António escreveu, a partir da obra do Mestre António Sérgio:
“É grande a nossa tendência para “adormecer a própria mente com noções vagas, sentimentais”. Tem sido uma das pechas do debate sobre a educação: a frase feita, o gesto fácil, a solução pronta-a-servir, a banalidade transformada em eloquência, em vez do estudo aturado, da reflexão sobre as experiências concretas, da análise sistemática e informada (…) Sérgio critica a albarda da resignação fomentada pela escola e afirma a necessidade de uma formação cívica prática: «a educação cívica meramente teórica parece um ensino de esgrima em que se não empunhasse uma arma, ou uma aprendizagem de piano em que os dedos se não mexessem: é um absurdo”.
E deste modo concluía o artigo:
“Fazer uma escola é, também, ser capaz de suster a indignação por tanto disparate que se escreve e manter um rumo que se alimenta da esperança enquanto necessidade ontológica, de uma esperança que, nas palavras de Paulo Freire, precisa da prática para se tornar concretude histórica. A Escola da Ponte, é uma escola extraordinária. É uma escola pública como as outras, com alunos e professores iguais a muitos outros. E com esta matéria-prima se tem vindo a fazer, graças a um trabalho metódico, persistente e coletivo, uma escola notável.
Júlio Cortázar escreve que uma ponte só é verdadeiramente uma ponte quando alguém a atravessa. Os colegas da Escola da Ponte já fizeram muitas travessias. Pelo deserto ou pela floresta, eles sabem que não estão sozinhos nas travessias que têm pela frente.”
A Ponte, de que o amigo Nóvoa falava no início do século, foi inspiração para aqueles educadores que, no dia 16 de dezembro de 2020, anunciaram o advento de uma nova educação. Eles sabiam que não estavam sozinhos na prática de uma educação verdadeiramente cidadã.
Por: José Pacheco
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