Gramado, 20 de dezembro de 2040
Num dos seus sermões, o Padre Vieira assim se pronunciava: “Quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, qual será a causa desta corrupção? Ou é porque os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber”.
Desistindo de convencer os homens, Vieira dirigiu os seus sermões para seres mais sensíveis, os peixes, por serem seres alheios falsidades e renúncias dos homens. Aos peixes, discretas testemunhas da corrupção de costumes praticada por aqueles que pela terra iam cumprindo os seus dias e que das injustiças não traduziam consciência.
Escutemo-lo: “Ou é porque os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem”. Ou – poderia acrescentar, séculos depois – porque andavam tão distraídos nas suas lides de ganhar a vida, que a perdiam. Ou por pressentirem que da corajosa denúncia da corrupção poderia advir nefasta consequência para si e para os seus.
Nos idos de vinte, assistíamos ao uso e abuso do poder. O património comum era usado em favor de uns poucos, em atos ilícitos, que quedavam impunes, não sendo raro que os suspeitos autores fossem considerados pessoas de bem. Convivíamos com um descarado tráfico de influências, víamos o erário púbico ser defenestrado. O respeito pela pessoa humana e de justiça eram conceitos deturpados, banalizados.
Bento XVI dizia que os cristãos não deveriam respeitar leis injustas. Mas, num país que contava mais de um milhão de leis, a única lei que se cumpria sem exceção parecia ser… a da gravidade. Numa época de injustiças como a que nos coube viver, fazíamos a nossa parte, lançávamos luz sobre os males de que o mundo padecia, para que fossem abertos rasgões de luz numa cortina de escuridão, sob a qual prosperavam ladrões e tiranos. Clamávamos por justiça, onde quer que os nossos atos pudessem promovê-la, atenuando a crise da sua ausência. Urgia debelar o medo, esse disfarce usado quando se fazia o que sempre se fez, como se nada de indigno tivesse acontecido.Diz-nos o dicionário que valor (do latim valôre) é qualidade de quem pratica atos extraordinários e, eticamente, um princípio passível de orientar a ação humana. Se assim erar, conviria seguir o preceito do Dalai Lama:
“Precisamos ensinar, do jardim de infância até a faculdade, que a moralidade é o caminho da felicidade”. O sistema educacional moderno prestava atenção ao desenvolvimento do cérebro, esquecendo o desenvolvimento moral. Se a escola não era o primeiro lugar para se educar o indivíduo, também não deveria ser o primeiro lugar de o deseducar, mas um lugar e tempo de aprendizagem de valores. Quando, no quadro de uma reorganização curricular, se instituiu “uma hora semanal de educação para a cidadania”, eu questionei os autores da proposta: por que razão não deveriam ser as restantes horas de “educação na cidadania”? Quem nunca viu uma criança a furar a fila da merenda? Quem nunca viu a família dessa criança a jogar lixo na rua e a entupir os bueiros? Até que ponto a escola apenas promoveria uma inútil acumulação de informação, demitindo-se da função de educar? Boff dizia que a crise que nos afetava não era uma mera crise cíclica e que uma nova ordem mundial se mostrava necessária, um novo modo de habitar a Terra. E Tourraine lançava um sério alerta: “Ou a crise acelera a formação de uma nova sociedade, ou vira um tsunami, que poderá arrasar tudo pela frente, pondo em perigo a nossa própria existência no planeta”. |
Por: José Pacheco
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