Encantado, 29 de dezembro de 2040

Hoje, quero falar-vos de coragem. Não só da coragem de estar numa linha de fogo com médicos intensivistas, ao lado de pacientes de covid-19, mas da coragem de afirmar o conhecimento contra a barbárie.

No tempo da pré-pandemia, que virtudes eram ensinadas aos nossos jovens? Se o professor não ensina o que diz, se transmite aquilo que é, o que ensinaria o professor instrucionista? Deixai que vos conte uma estória.

O Gastão era professor e se dizia homem digno, íntegro. Um amigo do Gastão ganhou a eleição para a prefeitura e convidou-o para ser o chefe de divisão de educação, criada pelo novo prefeito. Porém, seria necessário conferir seriedade à escolha. Foi aberto concurso público, concurso universal. Supostamente, qualquer cidadão, qualquer professor poderiam concorrer. Supostamente, em pé de igualdade!

Falta referir que o critério básico para admissão a concurso foi ser titular de licenciatura em… Ciências da Religião. O Gastão foi o primeiro (aliás, o único) classificado no concurso. Acrescente-se que o Gastão era professor de… Educação Religiosa e Moral.

Naqueles tenebrosos tempos, artistas se manifestavam, comparando a situação do Brasil com o enredo de uma novela da década de oitenta: a ‘Vale Tudo’. Segundo o António, a novela continuava atual. O folhetim televisivo era o retrato da corrupção, da falta de ética e da inversão de valores, que infetara a sociedade brasileira. A trama da novela era bem original e teve um final inusitado: os vilões não receberam punição.

Absurdas manifestações de negacionismo e as famosas fake news provocavam a erosão da coragem. Reagindo, outro corajoso artista, o Chico, atuava nas redes sociais desses tempos de Covid-19. Cantava a necessidade de uma vacina, que, de primária solução para a pandemia, havia sido transformada em politiqueira arma de arremesso.

Certa vez, lá por finais do dezembro de um ano incomum, quando evoquei as sábias palavras de Freire – Educação é um ato de Amor, um ato de coragem – uma amiga me recordou palavras de Osho:

“A palavra CORAGEM vem da raiz latina COR que significa “coração”. Portanto, ser corajoso, significa viver com o coração. O caminho do coração ê o caminho da coragem. É viver na insegurança, é viver no amor e confiar, é enfrentar o desconhecido. A pessoa que está viva, realmente viva, sempre enfrentará o desconhecido.”

Nos idos de vinte, amor sem coragem era sentimento estéril. Por isso, sempre que me perguntavam como se poderia operar mudança numa escola, eu respondia:

“Procurai um professor que ainda não tenha morrido”.

Por dezembro, me chegaram notícias da Praia da Fortaleza. Diziam ser um presente de Natal.  Eram imagens das experiências vividas pelas crianças do bairro, acompanhadas de algumas palavras:

“Espero poder relembrar que a escola não é só responsabilidade de quem tem filhos, mas de quem pretende ter, de quem ainda não tem, mas que estudou na escola no passado”. 

A escola do bairro continuava sendo usada segundo interesses de políticos, para dividir e enfraquecer uma comunidade, que assistia calada, desde há muitos anos. Mas, em Ubatuba, a mãe de duas lindas gêmeas resistia. No Rio, a corajosa Ingrid resistia. No Arraial da Ajuda, a Carolina e a Ilana também resistiam. Em escolas onde ainda havia professores vivos, se resistia. E a Carla tudo resumia numa frase:

“Coragem é a decisão, é a escolha, é a convicção, é viver.”

Se a coragem e a responsabilidade social tinham levado a Passagem de Ano para o aconchego dos lares, o Natal de 2020 tinha fechado um ciclo. E a coragem ressurgiria nos 365 natais de 2021.

 

Por: José Pacheco