Lavras, 2 de janeiro de 2041
Desde que me conheço como professor, me dei conta de muita generosidade, mas também passei por situações caricatas, típicas de escolas onde não havia professores que ainda não tivessem morrido. E houve um tempo, entre os anos setenta e noventa, em que me comportei como andarilho, indo de escola em escola, onde suspeitasse haver projeto. Até que passei uma tarde numa escola, onde não encontrei professores vivos.
Nesse tempo, militante do Movimento da Escola Moderna, divulgava as técnicas Freinet. “Ensinava” alunos a usar a imprensa Freinet, a praticar correspondência escolar, a fundar a sua assembleia. “Ensinava” professores a usar ficheiros autocorretivos, aquilo que, anos mais tarde, alguém chamou de “aula invertida”. Ajudava-os a “ensinar a ler” pelo “Método Natural de Leitura” e a preparar “aula-passeio”. Eram práticas comuns na Ponte e eu as partilhava.
De sala em sala, partilhei o planejamento da aula com cada professora, procurei ajudar a transformar desejos em possibilidades, auscultei dificuldades. À professora da primeira sala, ouvi:
“Finalmente, percebi o que é um projeto. E que aula tão bem dada, Zé! Mas, isso de projetos é muito bonito, mas… e as outras? Como é? Elas não colaboram”
A segunda professora despediu-se de mim com o seguinte recado:
“Que maravilha! nem precisei de mandar calar ou de repreender um aluno. Quem dera que todas as aulas fossem assim. Mas, não se iluda, colega! Há sempre quem não faça, nem deixe os outros fazer”.
Na terceira sala, a mesma lenga-lenga:
“Que aula ótima! Nunca vi os meus alunos tão atentos. Sabes, Zé, por mim, até nem há problema. Mas há outras que…”
À saída da última sala, idêntico comentário:
“Querer, eu até quero! Mas, Professor Zé, com certeza sabe que há outros que não querem…”
Eram demasiados “mas” para tão pouco envolvimento na causa das crianças. Esperei pelo fim das aulas. Tinha sido convidado para participar na reunião do conselho escolar. Sentei-me com as quatro colegas à volta da mesa, na exígua sala dos professores. Dado o silêncio e a atitude de escuta, supus que aguardavam que eu começasse. E eu comecei:
“Já estamos todos? Só a quatro professoras na vossa escola? Não falta mesmo ninguém? Onde está “a outra”?
Onde estaria o “quinto passageiro”?
Creio já vos ter falado do “Projeto de Criação de Comunidades de Aprendizagem do Distrito Federal. Nesse documento, estava escrito: “É preciso experienciar um novo modo de organização, em equipes de pessoas autônomas e responsáveis, todas cuidando de si mesmas e de todo o resto, numa escola realmente “pública”. E, sem negar o potencial da razão e da reflexão, juntar-lhe as emoções, os sentimentos, as intuições e as experiências de vida.”
O “Currículo em Movimento”, documento de referência do que deveriam ser a práticas da secretaria da educação (e não eram…) também apelava ao trabalho de equipe:
“A definição do currículo reveste-se de um caráter dinâmico e carece de um permanente trabalho reflexivo por parte da equipe de educadores, de modo a que seja possível a aquisição de saberes e o desenvolvimento de competências essenciais (…) questionando práticas pedagógicas conservadoras, compreendendo que a educação é construção coletiva”.
O projeto das comunidades de aprendizagem abriu caminho para professores que não queriam permanecer “orgulhosamente sós” e que questionaram um individualismo, que não permitia que um “outro” professor participasse de um mesmo projeto. Essa reelaboração da cultura profissional teve início em 2021 e atravessou duas gerações de professores.
Por: José Pacheco
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