Jabitacá, 15 de janeiro de 2041
Quando, nos idos de oitenta, subiu o preço das refeições na cantina da universidade, os estudantes puseram cadeados na porta e saíram à rua, em protesto. O reitor aproveitou a situação para alegar dificuldades de ordem financeira:
“Não sei se, amanhã, teremos sequer dinheiro para comprar papel higiénico”.
Nesse tempo, não havia computadores. Enviei uma carta ao reitor. Transcrevo um excerto:
“Senhor Reitor, a nossa escola é de Ensino Fundamental, não tem cantina. Só a universidade tem. O ministério parte do princípio de que as nossas crianças não têm estômago. Mas, mesmo sem cantina, ajudaremos o Senhor Reitor, seremos solidários com quem as tem.
Fique tranquilo. Não precisará de se preocupar com a compra de papel higiénico. Achamos uma solução. Habituaremos as crianças a não comer. De modo que, quando chegarem à universidade, não precisarão de defecar”.
No Portugal dos idos de setenta – à semelhança do Brasil do início deste século – o Ensino Fundamental era o segmento mais prejudicado pela falta de autonomia. Era como um “filho de um Deus menor”.
Fui professor ainda no tempo de uma ditadura, que havia deixado o país numa situação calamitosa. Na década de sessenta, escutava crianças, dizendo:
“Gostei tanto de ir hoje à escola, minha mãe! A senhora professora estava muito contente, porque inaugurou uma cantina, onde os meninos pobres podem almoçar de graça. As mesas muito asseadas, os pratos branquinhos, jarras floridas e tudo tão alegre! A sopa cheirava que era um regalo. Todos estávamos satisfeitos ao ver os pobrezinhos matar a fome”.
Perguntei à professora quem tinha feito tanto bem à escola e ela respondeu-me:
“Foi o Senhor Salazar. Ela gosta muito das crianças”.
O Estado gostava muito das crianças. E que dizer do novíssimo Estado saído das promessas da “Revolução dos Cravos”?
Um decreto de 1952 determinou que o Estado estimularia “a iniciativa privada, na fundação e manutenção de cantinas”. Um decreto de 1984 transferiu para os municípios competências em matéria de ação social escolar, nomeadamente a gestão de refeitórios. Consequência: as raras cantinas existentes foram extintas e os seus bens, legados e doações passaram a património dos municípios.
Uma gestão caduca retirava às escolas até a capacidade de gerir cantinas. Uma gestão ainda com resquícios de herança da ditadura engendrou mais um anátema de menoridade, que as escolas, mais uma vez, acataram “a bem da nação” (não me constou que alguma tivesse reagido).
O “jogo do empurra”, que se instalou desde então, teve como consequência que fosse o estômago das crianças a pagar mais um produto da original gestão do Ensino Fundamental. Em 2041, talvez não possais imaginar que situações desse tipo pudessem ter ocorrido. Mas crede que outros absurdos vos poderia contar.
Para se entender por que, nos idos de vinte, a autonomia estava ausente da cultura profissional dos professores, será preciso desocultar um passado feito de indignidades, ir às raízes do autoritarismo e da subserviência. Basta lembrar que, até meados do século passado, as professoras eram obrigadas a pedir ao Estado autorização para casar.
Os povos latinos têm características bem particulares. Duas delas: a resignação e o relativismo moral. Uma resignação, que, como disse o Júdice, não é indolência, nem desinteresse. É “uma espécie de cansaço cósmico, de desilusão acumulada, de impotência reconhecida”. E o relativismo moral não é falta de valores, nem desonestidade. Exprime uma tolerância indiferente, baseada no pressuposto de que “sempre foi assim”.
Por: José Pacheco
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