Vila das Aves, 21 de janeiro de 2041

As gaivotas sonhadoras, personagens de estórias contadas quando nascestes, aprenderam duras lições. Elas estavam sempre prontas a aprender com outras aves. A maior das lições foi dada por uma andorinha que, apercebendo-se do drama vivido pela escola das aves, por ali se deixou ficar, enquanto durou o cerco imposto pelos abutres.

É certo e sabido que nenhuma andorinha, em seu perfeito juízo, se deixaria ficar trocando o certo pelo incerto, arriscando a vida. Mas esta aceitara plantar ninhos em outros beirais. E, como sempre acontecia, perante a simplicidade e beleza dos pássaros, que me traziam à memória a simplicidade e a beleza esquecidas por muitos homens, quedei-me num silêncio comovido perante o gesto da andorinha resiliente.

Pressinto, queridos netos, que vos questionareis: como pode essa andorinha arriscar expor-se aos rigores da invernia e ao peso das saudades do futuro? Sabemos que a andorinha é uma criatura de hábitos gregários, que não sobrevive à solidão e que, quando aprisionada, resiste secretamente em silêncios que falam de voos por dentro. Mas essa manifestava uma alegria de existir maior que a saudade que sentia de África. É que a andorinha não estava sozinha, mas amparada. Eu explico.

No decurso das viagens, sempre que uma andorinha adoecia ou ficava ferida, logo as duas mais próximas abandonavam o bando, para a acompanhar e proteger, somente regressando ao aconchego de um outro bando em migração, quando a andorinha protegida recuperasse a capacidade de voar. E eu bem vi, ao longo de um longo Inverno, um ninho de lama a abarrotar do calor de três pares de asas negras. Assim, as gaivotas receberam destas andorinhas que sonhavam o regresso da Primavera mais uma prova de que a solidariedade não era uma palavra vã.

Num distante mês de janeiro, invernosos frios foram temperados com a chegada de pássaros de todas as cores e origens, que, seguindo o exemplo das andorinhas solidárias, acorriam em auxílio da escola das aves. E já não era apenas uma escola que urgia perseverar, mas todas as escolas onde, sob múltiplas formas esboçado, o futuro despontava.

Como vedes, eis-me, de novo em terras portuguesas. Havia jurado nunca mais passar um inverno no meu país de nascimento. Viciei-me no calor tropical do país de adoção. Mas, decidi fazer-vos uma visita. E voltar – talvez pela vez derradeira – ao lugar de todos os dramas de infância e juventude.

Senti-me assaltado por memórias, que me remeteram para as visitas a uma cadeia, onde o vosso bisavô estava preso, apesar de inocente. O seu “crime” tinha sido o de nascer pobre e crescer sozinho. Aos sete anos de idade, saíra da casa paterna. para um solitário correr mundo.  E a lição, que recebi de um pária social foi a de que inclusão não rima com solidão.

Hoje, se completam sessenta e seis anos sobre o infausto dia em que a vossa bisavó nos deixou. Morreu nos meus braços, nesse final de tarde. Vivera uma vida feita de sofrimento e solidão, mas não morreu sozinha.

O falecimento da Mãe Luíza foi como um sinal de alarme, o seu exemplo de vida me ensinou a lição da andorinha solidária. Numa sociedade do “cada-um-por-si”, poder-se-ia estar sozinho na cela de uma prisão, no seio da família ou dentro de escolas, onde não havia escuta sensível.

Como diria a raposa do Pequeno Príncipe, só conhecemos bem as coisas que cativamos. A nossa vocação deveria ser a de cooperar, a de ajudar a voltar à vida entidades vivas isoladas em si. Porque, nesse tempo, ainda havia quem estivesse bem acompanhado, em lugares ermos, e quem estivesse sozinho, no meio de uma multidão.

 

Por: José Pacheco