Aljezur, 24 de janeiro e 2041
Como diria o Mestre Boal, “cidadão não é aquele que vive em sociedade – é aquele que a transforma”. E outro mestre, de nome Chaplin, dizia-nos que cada pessoa que passa pela nossa vida não nos deixa só, deixa um pouco de si e leva um pouquinho de nós.
Na génese das comunidades de aprendizagem, cada pessoa deixava um pouco de si e levava um pouco do que nós éramos. Nessa permuta, prevaleciam valores fundadores do projeto da Ponte dos idos de setenta: autonomia, solidariedade, responsabilidade.
Responsabilidade era algo que os desgovernos de então não manifestavam. Após ser alcançada a trágica cifra de duzentos mil mortos, a OMS informava o Brasil de que era o país com o maior aumento de novos casos de coronavírus. Sem vacina e com o vírus em alta, muitas cidades instituíam “toque de recolher”.
Na Inglaterra, a polícia interrompia um casamento com quatrocentas pessoas. Em Portugal, num cenário de aparente normalidade, entre filas nas paragens de ônibus (que, por lá, se chamavam “autocarros”, botecos com venda à porta e pouco policiamento, os efeitos das aglomerações de Natal e Ano Novo se fariam sentir.
E o “fura-fila” continuava. Para além de prefeito e professores (que belo exemplo!), secretários de… Saúde. Um deles pediu, publicamente, perdão por furar fila e vacinar a “mulher da vida dele”. Numa live, o secretário, que era também pastor de uma igreja, admitiu ter errado ao infringir as diretrizes do Ministério da Saúde, mandando vacinar a sua mulher contra a covid-19, mesmo ela não figurando entre os grupos prioritários selecionados para a primeira fase de imunização.
Queridos netos, mais exemplos não acrescento, pois já ficais com uma ideia da dimensão da corrupção intelectual e moral desse tempo. Vede a que ponto chegara a degradação dos costumes. Já não bastaria a higiene sanitária, era preciso fazer uma higiene social, educacional.
O Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças indicou como causa do “aumento notável no número de casos de covid-19” o “relaxamento das restrições o Natal e de Ano Novo”. E, por meados de janeiro, chegaria o dia mais trágico da pandemia: recorde de mortes e de novos casos. Uma infeciologista pediátrica apelava ao bom senso:
“Não é só as escolas, tem de fechar tudo, a situação é caótica. Estamos a viver uma “situação de catástrofe. Temos de vacinar todos os idosos, “os que morrem”.
Finalmente, o Governo anunciava o encerramento de todos os estabelecimentos de ensino. Antes, de hesitação em hesitação, em gestos irresponsáveis, se foram perdendo vidas. Mortes evitáveis, se fossem outros os valores e os princípios de ação, se fossem outros os governantes.
Quando o Marcos nasceu, escrevi um livrinho com o título “Para os filhos dos filhos dos nossos filhos”. Encontrais, hoje, um final feliz para esse livrinho. Tempos sombrios já lá vão. Viveis tempos luminosos. Mas, para que os vossos filhos pudessem viver tempos felizes, muitos educadores abriram caminhos, lançaram sementes de mudança, sofreram agruras.
Nesses tenebrosos tempos, à margem da tragedia, uma “Carta de Princípios da Rede de Comunidades de Aprendizagem” estabelecia um saudável contraste. Na prática, assumia valores como a solidariedade, que, mais do que um objetivo ético a ser atingido, era condição universal para a construção de um mundo pacífico e igualitário. A “Carta” assumia o primado da cooperação, contrariando tendências individualistas. E o princípio da responsabilidade, a capacidade criativa do ser humano, que lhe permitia agir de forma ética e consciente, em sociedade.
Por: José Pacheco
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