Algures, em 2 de fevereiro de 2041
Amados netos,
Andarilho de muitas andanças, voltei “à estrada”. Algures me reencontro, andarilhando. Há muito, muito tempo, soube que há gente que nasce longe de casa e que consome a vida na busca de outras origens. E andarilhando, me lembrei de uma situação outrora vivida.
Nos idos de vinte, o pensamento de quem pensava a educação estava preso ao passado. Seria preciso silenciar o pensamento, para não estar doente dos sentidos, para que fosse possível desenhar novas rotas em velhos mapas mentais. Essa era tarefa de quem nascia longe de casa.
Num aeroporto afetado pela “crise”, eu deveria efetuar um voo de conexão e tentava explicar o óbvio:
“Minha senhora, repare que eu já tenho cartão de embarque, não preciso de vir para esta fila”.
“Se lhe disseram para vir para esta fila, é porque tem de vir”.
Nesse diálogo de surdos, a funcionária voltou-me as costas, sem me dar tempo de replicar. Meia hora decorrida e muita impaciência acumulada, cheguei ao balcão. Mostrei o cartão de embarque:
“O senhor não precisava de vir aqui para esta fila. E, agora, já fechou o check in do seu voo” – disse-me, sem me olhar. Telefonou, teclou, entregou-me um novo cartão de embarque para um voo que partiria três horas depois. Cabisbaixa, disse-me:
“Foi o máximo que pude fazer”.
Em silêncio, afastei-me. Enquanto aguardei o tardio voo, observei os passos em volta: gente cochilando, gente reclamando, gente apática, ou resignada, tal como eu.
Dispus de tempo suficiente para silenciar o pensamento, transgredindo a ordem do superficial. Concluí que, nos grandes aglomerados humanos, as pessoas se submetem a uma forçada convivência, toleram o outro sem o aceitar, suportam um “aturai-vos uns aos outros” num incómodo mal disfarçado.
La Rochelle disse que “a cidade não é a solidão porque a cidade aniquila tudo quanto povoa a solidão – a cidade é o vazio”. Isso mesmo: um vazio com raízes que eu busco esclarecer.
Inevitavelmente, a minha cultura profissional isolou as raízes de uma instituição geradora de vazios: chamou uma escola à colação. Mas, as escolas onde as funcionárias do aeroporto e os seus clientes se formaram permaneceram arquipélagos de solidões povoados por rituais vazios de significado.
Educar é assumir responsabilidade social, solidarizar-se eticamente. Somos marcados pela incompletude, geneticamente sociais e geneticamente históricos, porque, como diria Freire, criamos vínculos. A arte de conviver (viver com) exige uma atitude de abertura, o reconhecimento do outro e o respeito pela pessoa do outro. Mas onde se poderá aprender essa arte? Na Escola? Na Família? Na televisão? Na internet?
O Sartre estava certo de que, se não somos responsáveis pelo que fizeram de nós, somos responsáveis por aquilo que fizermos com aquilo que fizeram de nós. E eu recordar os professores que, nos idos de vinte, amorosa e corajosamente, criavam fraternas “turmas-piloto”, trocando uma profissão solitária por uma profissão solidária.
Não se tratava de uma mera troca de uma consoante por outra consoante. Ocorria uma profunda mudança cultural. O primeiro passo dessa reconversão consistia em os professores se sentarem à volta de uma mesa, ou na grama de um parque, para se transformarem numa equipe. Um projeto faz-se com pessoas conciliadas consigo e com os seus pares.
Com esta reconfortante reflexão, me aquietei. E o tempo de espera pelo voo ficou mais suportável, embora soubesse que ainda havia muita gente distante de si própria!
Como diria a Maria, “às vezes, há gente que nasce longe de casa”. A Maria era filósofa e não sabia.
Por: José Pacheco
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