Algures, em 8 de fevereiro de 2041
Por via de um grave acidente, a Isabel ficou coxeando. Uma perna maior que a outra a enchera de complexos. E com vinte anos de idade dizia “querer acabar com a vida”.
“A minha vida é uma merda, professor! Todas as minhas amigas têm namorado e nenhum homem me quer. Para que é que eu sirvo?”
Assim falava a Isabel, nos encontros marcados para esclarecimento de dúvidas. Eu acolhia os meus jovens alunos, para com eles conversar sobres os piagets da vida. O Piaget não comparecia nos encontros com a Isabel. Eram encontros pautados na queixa, encontros-queixumes. Até ao dia em que, estando eu a passar por um período de tpm intelectual, se me acabou a paciência e lhe disse:
“Isabel, já me disseste mil vezes que te queres matar. Então, sugiro que vás de ônibus até à beira-mar, neste fim de tarde. Contempla o pôr-do-sol. É belo, sempre novo e gratuito. Depois, se te quiseres mesmo matar, atira-te ao mar. Mas, antes de te matares, olha o pôr-do-sol”.
A Isabel não se matou. Soube-o, passados vinte anos, quando recebi o seguinte e-mail:
“Lembra-se de mim, professor? Sou a Isabel. Fui ver o pôr-do-sol. Vivo com um companheiro, que me ama mesmo como eu sou. Tenho dois filhos lindos. E estou a preparar a escola para eles. Me ajuda?”
A Isabel reinventou a existência, recriou sentido de vida, labutava para dar sentido à vida dos outros.
Amados netos, precisei de voltar às páginas que para vós escrevi, vai para quarenta anos:
“Como pombas com ramos de oliveira atravessados nos bicos, as aves aprendizes estabeleciam laços, lançavam alicerces das pontes que levavam dentro de si, nas faldas das margens a unir. Não importava a tumultuosa torrente que ameaçava fazer ruir as frágeis fundações. Sentiam-se quase felizes, à beira de voar sonhos novos. Medo não sentiam. E até o inesperado os fascinava, um sentimento forte e, ao mesmo tempo, leve e doce. Medo não sentiam, porque não partiam sozinhos”.
Assim se expressavam educadores que, nos idos de vinte, ousaram criar uma rede de “turmas-piloto”. Decisões éticas, corajosas de quem saiu da queixa para a ação, cumprindo centenárias promessas, criando os primeiros protótipos de comunidade de aprendizagem, que o mundo da educação conheceu. Nas “turmas-piloto, o estar junto não era alheio a algumas utopias que povoaram discursos sobre educação. Aproximava-se de concepções «falansterianas», colhia contributos platónicos e não enjeitava referências libertárias.
Como escreveu o Ruy, são os pássaros “que faziam cantar as árvores”. Se a elas estavam ligados pela carícia das ramagens, não as possuíam. E arriscavam partir para uma “educação do futuro”, prodigamente teorizada e sempre por cumprir. Abrolharam a “educação do futuro” num presente comunitário. Os pássaros de alma sensível entendiam o exemplo da cotovia, que nidifica em terra firme, junto aos ninhos de aves irmãs, mas que também se lançava em voo na vastidão de espaços desertos.
Os educadores das “turmas-piloto” celebravam o encontro de cada quarta-feira de 2021, cumprindo o preceito de Malinowski: “O grande sinal da cultura, tal como é vivida é o fenómeno do agrupamento permanente”. O aperfeiçoamento de um coletivo se nutria da permanência numa equipe e daquilo que, para além de inadiável missão e compromisso, se fazia por prazer, brincando.
Brincar é a coisa mais séria que há na vida. O Pessoa isso nos diz, no “Guardador de Rebanhos”, contando a estória de quando conheceu o Menino Jesus. Foi isso que eu disse à Isabel, no final do último dos encontros. Que fosse ver o pôr-do-sol. E que, depois, brincasse, se recriasse…
Por: José Pacheco
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