Serra Branca, 19 de fevereiro de 2041
Aquando de uma dita “reforma curricular”, um dos pontos fortes do debate era “o tempo de duração de uma aula”. E, no decurso de um congresso, alguém perguntou se eu estava de acordo com a “carga horária” em vigor. Respondi que “carga” era coisa de jegue, com o devido respeito pelo colega e pelo jegue.
O colega voltou à carga. Perguntou-me se aprovava a alteração do tempo de aula de cinquenta para noventa minutos. Respondi, perguntando:
“Cinquenta minutos ou noventa minutos para qual aluno?”
A loucura normal instituiu os noventas minutos de aula, uma espécie de dose dupla de tédio. Alegavam os burocratas que, desse modo, os professores teriam um tempo para “dar a matéria teórica” (sic) e outro tempo para “aplicação prática da matéria dada” (sic). Assim passou a ser: durante quarenta e cinco minutos, os professores mandavam abrir o livro didático na página dezoito e liam o conteúdo do livro; no minuto quarenta e seis, mandavam os alunos abrir o manual na página noventa e papagueavam a componente prática.
O colega não sabia que, há mais de cem anos, alguns pesquisadores chegaram à conclusão de que o “aluno médio” teria, “em média”, uma capacidade de atenção seguida de cerca de cinquenta minutos. Que não era por acaso que as aulas duravam, “em média”, esse tempo. Mas que “pesquisas” recentes referiam que as crianças do século XXI tinham uma capacidade de “concentração média” (sic) de cerca de seis minutos.
A duração da aula era uma falsa questão de um debate estéril. O problema consistia em ainda haver aula, fosse de cinquenta, fosse de noventa minutos. Expliquei que teríamos de ultrapassar um discurso semeado de abstrações (aluno médio, carga horária etc.) para falar do aluno concreto. Mas o debate acabou ali, fez-se silêncio, porque aquilo que era óbvio não carecia de explicação.
Li num jornal dos idos de vinte algumas pérolas de ignorância:
“A experiência afirma que o melhor período para aprender a ler é entre os cinco anos e oito meses e os oito anos”.
“O governo federal pretende unificar em seis anos a idade em que os estudantes brasileiros começam a ser alfabetizados. Nenhum aluno poderá ser matriculado, se não tiver completado seis anos até fevereiro. Se fizer o seu aniversário, nem que seja um dia após o limite estabelecido, terá de continuar a educação infantil”.
O azar era daquele que nascesse entre o estabelecido “dia derradeiro” e o dia seguinte. Alguns estados aceitavam matrículas de crianças que perfizessem seis anos até 31 de dezembro, outros estabeleceram o critério do sexto aniversário até 30 de junho. Disposições legais fixaram o limite em 30 de março.
Alguém saberia dizer por quê? Nem eu!
Tanto tempo se perdia em questões bizantinas! Já não se acreditava ser possível deslindar o sexo dos anjos, mas insistia-se em determinar a “idade para aprender a ler” ou a “idade para ingressar no primeiro ano”.
Quando foi matriculado no primeiro ano, o Daniel já sabia ler. Numa visita à sua família, vi que ele estava a fazer os “trabalhos de casa”. Consistia em “escrever uma frase sobre a ida ao circo”.
O Daniel já sabia ler, mas estava atrapalhado. Perguntei por que estava nervoso. Ele assim respondeu:
“Eu quero escrever que o que mais gostei foi de ver os palhaços”.
Por que não escreves essa frase? – Quis eu saber. Ao que o Daniel respondeu: “Não escrevo palhaços porque a professora ainda não deu o “lh” aos meninos. Nem o “c de cedilha”!!”
A culpa era do Daniel, que aprendia mais rapidamente do que o ritmo das aulas. O culpado era o Daniel, porque não cumpria o calendário estabelecido para… aprender a ler.
Por: José Pacheco
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