Eunápolis, 28 de fevereiro de 2041
Vos dou a ler mais um dos muitos apelos, que suscitaram enorme indignação e uma sensação de impotência:
“Tenho dois filhos. E tenho estado angustiada com a lentidão com que as escolas se adaptam a essa nova humanidade e aqui, particularmente, assusta-me ainda mais pela rigidez das formas e métodos. Parece ser uma educação sem afeto, sem amor e a crítica. Mas o que me faz enviar este e-mail, que é, na verdade, um pedido de ajuda, é o meu filho, que acabou de ser retido em quatro disciplinas, depois de passar por toda sorte de castigos e punições.
O seu pecado é falar o que pensa e não aceitar imposições. Foi vítima de xenofobia, agressão física, deboches e toda sorte de ocorrências. Não aceita de forma nenhuma injustiça e, por isso, rebate. Cerca-se no seu mundo de criador de páginas e projetos. É o popular da escola, amado entre os colegas, odiado entre os professores, especialmente a diretora de turma. Eu era chamada na escola, constantemente. A reclamação era que o meu filho era muito rápido a aprender e que fazia perguntas sobre matéria que só deveria aprender mais tarde.
A diretora de turma do ano seguinte tinha uma antipatia especial pelo meu filho e isso se foi agravando. Ele era chamado de parvo, tratado com deboches. A escola teria autoridade para punir de acordo com o estatuto, sempre que achasse por bem. Não demorou e lá foi ele limpar a escola por uma semana. Durante algumas semanas, antes do ocorrido, ele não saia do quarto, não comia direito, só chorava, não queria ir mais à escola (que sempre amou, apesar de tudo).
Por favor, me ajude a saber se meu filho é um agitador ou um contestador. Desde muito pequena, eu achava a escola sem sentido. Aprendia tudo sozinha, mas, pelo menos, eu era comportada, não respondia, não falava. A minha filha é mais normal, mas perdeu o interesse pela escola, também (…)”.
Tive oportunidade de conhecer o jovem. O seu “pecado” era o de “aprender coisas que só dois anos depois, nós pretendemos ensinar”, como foi dito por um professor. A imposição instrucionista de ensinar determinados conteúdos em determinado ano, não admitia que jovens “aprendessem antes do tempo”, ridícula afirmação escutada da boca de outro professor.
Eu só consegui ajudar aquela família, enchendo-me de compaixão pelos meus companheiros de profissão e ajudando-os a entender que, se uma base curricular os obrigava a proceder do modo como procediam, essa base contrariava todo o edifício teórico da sua introdução.
Os professores reconheceram que a Universidade os “formatara”, tratando-os como objetos e não como sujeitos de aprendizagem – contrariando, por exemplo, as “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial e Continuada (a Resolução nº 2 de 2015, do CNE)” – documento cuja existência eles desconheciam. Estavam desarmados, legal e cientificamente desarmados. Os meus companheiros de profissão padeciam de uma estranha enfermidade, de heteronímia. O problema era de origem cultural. Urgia cuidar das pessoas dos professores, ajudá-los a modificar a sua cultura pessoal. Urgia criar condições de reelaboração da sua cultura profissional.
A formação pressuposta no “Guia de Implementação da BNCC” reforçava os vícios da formação inicial, convidava a que, em sala de aula, os professores continuassem a consumir um currículo “pronto a vestir”. Poder-se-ia pressupor que, com a formação para atuar em sala de aula, o modelo de desenvolvimento curricular se alterasse?
Hoje, sabemos que nada se alterou. O instrucionismo desvirtuou a introdução da base curricular, neutralizou-a.
Por: José Pacheco
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