Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDLVII)

Jequié, 2 de março de 2041

Nos idos de vinte, gastei tempo e paciência, tentando que o debate sobre a proposta de uma base curricular fosse sério, fundamentado na lei e numa ciência prudente. Apelei aos meus companheiros das ciências da educação, mas cansei-me de falar para surdos cativos de corrupção intelectual e moral.

Nos anos seguintes, o debate manter-se-ia num nível de indigência pedagógica. Todo mundo se “achava” no direito de dar “opinião”. Se o “achismo” prevalecia sobre a argumentação de natureza científica, desisti. E, sempre que me pediam “uma opinião” sobre a BNCC, a minha indignação ditava a “opinião” e eu a adjetivava com um termo “radical”. A paciência se esgotara.

Muitos amigos haviam participado no “Movimento pela Base”. Ficou difícil o diálogo. Longe de mim duvidar da seriedade e da dedicação do meu amigo André ou da minha amiga Tatiana, por exemplo. Louvável fora o seu envolvimento na elaboração do documento. Esses e muitos outros extraordinários educadores nunca admitiriam que, na sua generosa disponibilidade, tivessem sido usados, manipulados, mas foram-no. As suas excelentes contribuições serviram apenas para legitimar, enfeitar a base, porque a sofisticação do discurso viria a contrastar com a pobreza das práticas, que a base impunha e com os trágicos efeitos que ela causou. Uma administração burocrática e autoritária anulou iniciativas de mudança. Embora a LDB tivesse aberto oportunidades de participação, a participação dos meus amigos na elaboração da BNCC foi pervertida.

Currículo não é mero repositório de competências, é um conjunto de experiências, vivências, que convergem para objetivos educacionais. Se o currículo é a totalidade das experiências de aprendizagem, conviria saber que tipo de experiências seriam proporcionadas e em que tipo de escola. Qual o modelo epistemológico, que subjazia à proposta de base curricular? Eis a resposta: “aula” era a palavra mais frequente no texto da base (75 vezes), no pressuposto de que a BNCC se concretizasse com referência ao paradigma da instrução.

Sempre que conseguia colocar um educador à beira de tomar a decisão ética de refutar o instrucionismo, escutava:

“Mas a lei não permite…”

“Qual lei?”

Ficava sem resposta. A lei permitia. Era a regulamentação que criava obstáculos ao cumprimento da lei.

Quando se requeria inovação educacional prática, não seria de exigir, também, inovação normativa? 

O artigo 23º da LDB determinava:

“A educação básica poderá organizar-se em séries anuais, períodos semestrais, ciclos, alternância regular de períodos de estudos, grupos não-seriados, com base na idade, na competência e em outros critérios, ou por forma diversa de organização, sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim o recomendar”.

Perguntei a muitos “especialistas”:

“Quais os critérios de natureza científica, que legitimam a determinação de, no ano de escolaridade “x”, os estudantes devam reconhecer, identificar, usar o conteúdo “y”, ainda que disfarçado de objetivo de aprendizagem “z”? E por que todos devem aprender ao mesmo tempo?”

Esperei sentado por uma resposta, que nunca chegou.

Para garantir a todos o direito à educação, essas escolas não esperaram por uma base curricular, para reconfigurar as suas práticas. Se a BNCC virou lei, ter-se-ia de alterar o artigo 23º de LDBEN? Os projetos que haviam abolido a cartesiana segmentação em anos, ficariam “fora da lei”? Ou estaria parcialmente ferida a LDB, quando uma BNCC obrigava os jovens brasileiros à decoreba de conteúdos em salas de aula, em determinado ano?

 

Por: José Pacheco

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