Guarda do Embaú, 20 de março de 2041
Quando deparava com situações que não sabia como explicar, refugiava-me entre metáforas…
No fim do dia, o automóvel regressaria ao lugar de onde havia partido, mas a formiga não o sabia. Inadvertidamente, subira pela borda do pneu e introduzira-se na cabina, para empreender uma fatídica viagem. Enquanto percorria as longas estradas de Minas, eu observava o deambular solitário da pobre formiguinha. Trémula, subia, descia, voltava a subir, contornava obstáculos no couro escorregadio. Quase trezentos quilómetros humanos percorridos, a formiguinha passou pela enésima vez no mesmo lugar: o rebordo do banco dianteiro. Num gesto suicida, embrenhou-se no cabelo do passageiro. Porfiou, repetiu vãs tentativas de fuga sobre tecido e metal, até ao fim inglório – acabaria esmagada sob uma palmada certeira do meu companheiro de viagem.
A formiga da história não era a mesma que o Zeca Afonso cantava. Eu preferia a formiga cantada pelo Zeca, andando no carreiro das outras formigas, mas em sentido contrário. Admirava os professores que ousavam mudar as suas práticas, exasperando os imobilistas. Acompanhava aqueles que investiam no estudo de teorias, exasperando aqueles que ainda acreditavam que, sem fundamentação teórica, seria possível melhorar a prática. Solidarizava-me com os práticos que melhoravam as escolas, constituindo-se em alvos preferenciais dos que criticavam a “pedagogia centrada no aluno”.
A incauta formiga da história era laboriosa, mas de uma ingenuidade fatal. Uma ingenuidade idêntica à dos laboriosos professores que criam que, “dando aula”, ensinavam. Quando o ruído se instalava na comunicação e os professores disso não se apercebiam, os equívocos se sucediam. Como aconteceu numa sala de aula da antiga escola primária.
Era uma vez… um aluno, que levava cartões para a escola e os entregava ao professor. Durante alguns dias, o professor ignorou-os. Até que o aluno perguntou:
“Senhor professor, por que não lê os papéis que eu lhe dou?”
O professor leu o primeiro dos papéis:
“ALUGA-SE”.
“Então, se tu ainda não sabes o la, le, li, lo, lu, já queres ler este cartão, que diz “ALUGA-SE”?”
“Ó professor, o meu prédio está cheio de cartões com essa palavra. E não há lá nenhum cartão com o “la, le, li, lo, lu”.”
Rematemos com um exemplo de incomunicabilidade universitária:
“Agora, temos cinco minutos para tirar dúvidas. Alguém tem dúvidas?”
Ninguém se pronunciou. Ninguém tinha dúvidas, porque ninguém tinha entendido o que quer que fosse do que a professora dissera. A catedrática retomou a leitura do power point, até ao momento em que exclamou:
“Ai! Perdão! Esta imagem está posta ao contrário, de penas para o ar…!”
“Pode deixar assim, minha senhora. Para nós, tanto faz!” – exclamaram, por sua vez, os alunos.
A douta senhora tinha gastado dois meses a falar para ninguém! Nenhum daqueles alunos possuía rudimentos básicos para encaixar a “matéria dada”. Nestes diálogos de surdos das escolas de antigamente se consumia a energia que escasseava para afastar o espectro do insucesso. Havia professores que tomavam consciência dos equívocos, mas não arriscavam mudar, porque os cínicos atacavam nas escolas e na internet. Quedavam-se num exercício de queixumes, em circuito fechado. Eu escutei os desabafos de um desses professores:
“Bem gostaria de poder trabalhar numa escola diferente da minha, porque só vejo acomodação e infelicidade à minha volta. Gostaria de fazer um trabalho como o que vós fizestes, na Ponte.”
“Gostarias, ou queres? Gostarias, ou irás fazer?” – repliquei.
Por: José Pacheco
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