Uberaba, 22 de março de 2041
Querida Alice, querido Marcos, a estória do beija-flor é uma fábula tão curta, que se conta em poucas linhas. Mas é também tão rica de ensinamento, que aquilo que nos ensina não cabe em mil compêndios. Conta-se que, certo dia, houve um incêndio na floresta – no tempo em que nascestes, havia mãos criminosas que ateavam fogos destruidores – e todos os animais se puseram em fuga. Todos, excepto o beija-flor. Ia e voltava, ia e voltava, trazendo uma gota de água no bico, que deixava cair sobre as labaredas e a terra calcinada.
Quando um dos animais em fuga o interpelou, dizendo ser impossível extinguir o fogo daquele modo, o beija-flor respondeu:
“Eu sei que não são estas gotas que vão apagar o fogo, mas eu faço a minha parte”.
Talvez o beija-flor da estória tivesse lido um livro de muitos livros, onde está escrito que mais vale acender uma luz do que maldizer a escuridão. Isso não sei. O que sei é que havia um beija-flor no meu Jardim do Éden. Pequenino, negro, um corpinho onde cabia a inabalável fé dos colibris, o dom da solidariedade que herdara das gaivotas, toda a generosidade do mundo. O beija-flor sabia que só vale a pena viver, se a Vida for serviço.
A Vida ao serviço da Vida nos leva a defrontar obstáculos. Tentando ultrapassá-los, cometi tantos erros na Vida, que nem sei como ainda há quem cuide deste velho professor. Como quando suscitei reações de tenebrosos seres. Escabicharam os mais secretos recantos, estiveram atentos ao mais leve bater de asas. Depois, partiram para informar o chefe dos pássaros de tudo o que tinham visto e escutado e que em nada correspondia ao que os abutres tinham escrito e os papagaios tinham repetido. Mesmo assim, o negacionista chefe dos pássaros manteve-se persecutório, provando que na vida dos pássaros, perante a infâmia, como face à beleza de certos gestos, há momentos em que nem chorar se consegue.
Quando fui forçado a me afastar do Jardim do Éden, a amoreira adoeceu, a romãzeira morreu, os canarinhos-da-terra migraram para outros jardins. Mas, o beija-flor ficou por lá, não desistindo de fazer a sua parte.
Eu decidira viajar, depois de mais de um ano prisioneiro de um prudente confinamento imposto por um vírus. Senti necessidade da presença presente dos beija-flor, que apenas vira na tela do computador. Fui ao encontro dos beija-flor de outras paragens.
Eram tempos de profanação aqueles de que vos venho falando. Mas eram também tempos de um adormecer calmo, na expectativa de manhãs que lavassem toda a infâmia que sobre o mundo se abateu. Os pássaros que habitavam as trevas assustavam pelo poder da maldade que sempre estavam prontos a usar. Mas, a maldade pouco ou nenhum poder tinha face ao brilho sereno da verdade.
Estava a escola imersa numa angustiante espera, quando foi acariciada pelo sussurrar de palavras esperadas. Os pardais são pássaros de que se depreende uma benfazeja simplicidade e foram as palavras singelas de um pardal que chegaram sob a forma de e-mail.
“Caro Zé, tenho seguido com grande preocupação teu viajar. Sei que acreditas na possibilidade de todos os pássaros poderem viver livres das grilhetas, que os violentam. Pena é que, para além dos vírus, não faltem por aí urubus famintos. Mas, fica sabendo que os beija-flor continuam ativos e não estão sozinhos. Há muitos pardais debaixo de um céu carregado de nuvens escuras, que apenas aguardam um sinal para agir”.
O sinal de agir seria dado pelos beija-flor. Pelos que eu já conhecia da Internet e pelos que reencontrei na viagem. Mesmo em tempo de pandemia, “navegar é preciso”. Viver e fazer viver, também é preciso.
Por: José Pacheco
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