São Tomé de Negrelos, 9 de abril de 2041

No passado dia 3 de abril, se ainda entre nós estivesse, a Maria Nilde faria cento e onze anos. Hoje, a minha amiga Geni celebra mais um aniversário. E eu vou evocando homens e mulheres do passado, educadores e educadoras admiráveis, para que a sua memória não pereça.

A Geni assumiu a dura tarefa de continuar o projeto “Fazer a Ponte”. Com a Anita, resolveu problemas pendentes e defrontou aqueles que um ministério autista lhes criou. Como já vos disse, a história da Ponte foi feita de resiliência e sofrimento, trágica sina de um sistema que não merecia os professores que tinha e que permitia que os raros focos de renovação se apagassem.

Quando a Ponte conseguiu assegurar a todos os alunos o direito à educação, fomos alvo de torpes ataques. Ora era o terrorismo verbal, via telefone, ora eram lançados panfletos, na calada da noite, contendo falsas acusações.

Recordo-me de ver a Luísa em lágrimas, dizendo:

“Zé, é melhor acabarmos com isto. Já não aguento mais! É muita maldade! Queres saber? Hoje, a mãe da Antónia veio perguntar-me se tu eras pedófilo. Ouviste? Pedófilo! É o que andam por aí a dizer. É boato, mas pode haver quem acredite. Já não aguento mais!” 

Insinuações e boatos em publicados nos jornais da região, ameaças veladas de acabar o projeto eram o nosso “pão de cada dia”. Sofríamos penalizações do poder público, mas o sofrimento maior foi termos descoberto que muitos desses ataques eram provenientes de escolas próximas. Apercebemo-nos de que o maior aliado de um professor era o outro professor. Mas, com mágoa, também descobrimos que o maior inimigo de um professor “diferente” era o professor da escola do lado.

Não estávamos sozinhos. A Jacinta, a Conceição, a Augusta e muitas outras educadoras se uniam e resistiam. Os exemplos de excelentes profissionais incomodavam. Mas, só muito tarde, por experiência pessoal, compreendi por que razão diziam que a professora Josefa “era uma chata”. Assim a chamavam. Também lhe chamaram arrogante, quando defendia os seus pontos de vista e os fundamentava, pondo em causa as práticas dos injuriadores.

Era considerada “arrogante” porque conseguira garantir sustentabilidade pedagógica, administrativa e financeira a si e ao seu projeto. Então, a acusaram de falta de humildade, quando ela apresentava publicamente um projeto pleno de êxito. Não era considerada “humilde, porque desmascarara a mediocridade dos antiéticos, que a maltratavam.

Voltaram a acusá-la de arrogante, quando ela disse ter nojo do dinheiro. O vil metal tinha sido o motivo da prisão do seu pai e da morte prematura da sua mãe. Aprendera a ser economicamente autônoma, enquanto os seus detratores se vitimizavam, por não terem aprendido a gerir proventos – nem a “educação financeira”, modismo da época, lhes valera!

Por que evoquei a Maria Nilde, no início desta cartinha? Porque era autônoma. A autonomia é relacional. Ninguém é autônomo, quando está sozinho. Professor solitário em sala de aula crê sê-lo, mas não o é. É autossuficiente, individualista e transmite valores, transmite individualismo aos seus alunos, produz heteronímia.

A Nilde sabia por que fazia aquilo que fazia, sabia fundamentar a sua prática, era intelectual e moralmente autônoma. Mas os “vocacionais” careciam de autonomia administrativa. Tanto bastou para que a ditadura fechasse as escolas e para que ela e os seus companheiros sofressem as agruras da prisão.

Nos idos de vinte, quem visitava os lugares de criatividade e liberdade dos extintos ginásios vocacionais, só via janelas ornadas de grades e cadeados.

 

Por: José Pacheco