Vila Real de Santo António, 15 de abril de 2041
Voltemos à pergunta da Tina: “Tem que ter aula?”
Como vos disse em cartinhas anteriores, o meu amigo Pedro era implacável na crítica da escola da aula e de uma espúria Base Nacional Curricular Comum, que legitimava o absurdo. Para Pedro Demo, a BNCC era “uma proposta conservadora e dissimulada, mistura de retórica barata e de má consciência. Confundia conteúdos e habilidades, em seiscentas páginas intragáveis”.
Talvez o Pedro fosse o mais esclarecido cientista da educação da sua geração. Era, sobretudo, um pesquisador educador ético, rigoroso. Sabia que era preciso sair do sistema de ensinagem e “fazer outro”. Nos seus livros, abordou o conceito de “autoria”. Para o Pedro, o “protagonismo juvenil”, a “autonomia do estudante” e outros modos de recriar a escola tinham sido “atos falhos”:
“Se levássemos a sério o que seria “itinerário formativo”, facilmente reconheceríamos que implica “recriar a escola”, porque, sendo uma proposta de aprendizagem autoral, pede outro formato escolar, outro professor, outra pedagogia. Se o foco for a autoria do estudante – para aprender como autor – não é viável gerir isso com aula de 45 minutos, porque toda atividade de aprendizagem supõe tempo muito maior, programação aberta e flexível, participação ativa do estudante (ler, elaborar, pesquisar, estudar), também um professor que tenha autoria (que resumo em três lances: autor, cientista, pesquisador, ao que agora há que acrescentar cuidador).
A escola que temos, do início do século passado, de molde fordista reprodutivista, tal qual está parodiado ostensiva e provocativamente nos “Tempos Modernos” de Chaplin, é uma fabriqueta instrucionista, devotada a reproduzir conteúdos curriculares, sistematicamente.
Enquanto não falta aula, aprendizagem é apenas eventual. A BNCC, que, em termos concretos, é apenas um repositório de conteúdos curriculares organizados conforme alguma lógica acadêmica e didática, não pode recriar a escola, por mais que isto solicite. Também não muda os professores, condição maior para termos “outra escola”. Os conteúdos, devidamente codificados alfanumericamente (para que nenhum escape ao controle instrucionista), serão, provavelmente, transmitidos como sempre foram, porque é isto que o sistema, ao final, exige, não aprendizagem, e mormente porque os professores foram “deformados” para este tipo de atividade instrucionista na faculdade.
“Recriar a escola” é empreendimento frontalmente imenso e complexo, embora fosse o que mais parece decorrer dos diagnósticos disponíveis, mesmo com base em dados do Ideb ou PISA, por serem tais avaliações também propensamente instrucionistas”.
Completo esta cartinha saboreando a cáustica prosa do Pedro, pois o Mestre dizia tudo o que era preciso que se dissesse e bem melhor do que eu poderia dizer:
“O gesto da BNCC de pedir a “recriação da escola”, embora extremamente pertinente, se encaixa no rol retórico da má consciência. Toda mudança proposta é armada dentro do sistema, para aprimorá-lo ou adaptá-lo, nunca para o superar. O sistema instrucionista atual de ensino não faz sentido, porque é completamente inepto em termos de produzir aprendizagem. Não se trata de viver consertando uma canoa furada; precisamos de outra canoa, ou melhor, do mais moderno e atualizado transatlântico possível”.
A sólida (e mordaz) fundamentação dos estudos do Pedro foi inspiração e suporte de mudança. Era a voz clamando no deserto. Mas era, também, um oásis de cientificidade, em tempo de negacionismo pedagógico.
Por: José Pacheco
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