Tavira, 2 de maio de 2041
Netos queridos,
Nesta carta, vos darei a conhecer o desfecho da conversa com a Alice. Por acreditar na inteligência dos professores e na da Alice, em particular, derivei da maiêutica estratégia:
“Ó Alice, tu leste o que diz o Perrenoud sobre a avaliação?”
“Não, não li.”
“Ele diz que “é preciso mudar a forma centenária como a escola se organiza, pois os professores e os alunos perdem o seu tempo numa escola assim organizada”.
“Não estou a perceber aonde queres chegar.”
“Alice, por que não se interrogam as escolas sobre o modo como estão organizadas? Por que continuam “organizadas de uma forma centenária”?
“Zé, tu sabes que eu não sou muito dada a leituras. Mas lembro-me de ouvir falar desse autor na minha pós-graduação.”
Nas graduações e pós-graduações, eram raros os formandos “dados a leituras”. A pesquisa e a “produção científica” era apanágio de PhD. A universidade havia perdido o monopólio do saber, mantinha apenas o da creditação. As escolas lhe seguiam o exemplo, reproduzindo práticas ancestrais ornamentadas com jargão científico. A Alice pagou um diploma, mas não recebeu em troca conhecimento, que lhe permitisse “definir critérios”.
“Gosto muito de falar contigo, mas ainda tenho de corrigir uns testes…”
A já longa conversa estava prestes a terminar, e apanhei a “deixa”:
“Querida amiga, a exclusiva utilização de um mesmo tipo de instrumento de avaliação tem sido responsável por graves erros. Na correção de testes, pode haver muita injustiça. Atenda-se ao exemplo do candidato a medicina que, por uma centésima, não acedeu ao curso desejado.”
Interrompi a ladainha, por me aperceber de que a Alice já não escutava. Perguntei se aceitava a minha ajuda, para mudar a avaliação.
Respondeu que “sempre foi assim” e que tinha mais que fazer. Dirigi-lhe uma última pergunta:
“Se tu já percebeste que fazer pautas com números é pura perda de tempo e de energia, porque continuas a fazê-lo?”
“Isso não interessa. O que queres que eu faça, se eu estou sozinha? Se eu falar dessas coisas estranhas que tu falas. ainda me chamam maluca! O que eu quero é que me ajudes a resolver esta coisa dos critérios de avaliação”.
No tempo da Alice, quase não existia avaliação nas escolas. Não lhe cabia toda a responsabilidade. O (mau) exemplo, em palavras suas, “vinha de cima, do ministério”. “E até da universidade!” – acrescentou:
“A gente tem de fazer o que nos mandam, não é? E aprendemos a fazer assim na universidade.”
A Alice continuou a aplicar prova, sem querer saber de que conceber itens de teste, garantir fidelidade e tudo mais é um exercício extremamente rigoroso, assim como assegurar que as condições são as mesmas para todos, quando se aplica prova. De nada valeu ter-lhe dito que esse instrumento de avaliação apenas “provava” a capacidade de acumulação cognitiva, de armazenamento de informação em memória de curto prazo, para debitar e esquecer.
Despedi-me da Alice com uma citação de Freudenthal:
“O exame torna-se um objetivo; o que vem para exame; um programa; o ensino da matéria para exame, um método”.
E do Iturra, que assim dizia:
“Na vertigem das reformas educativas, a memória transmitida é a abstração escrita de um saber variável, que não condiz com o quotidiano em que viveu uma parte da população, que se identifica melhor com a sua própria memória oral como fonte de conhecimento. A cultura letrada, que organiza o ensino, não tem sido capaz de romper com o modelo imperante de eficácia económica e incorporar a prática social como mediadora entre o saber da experiência controlada e o saber que provém da experiência provada”.
Por: José Pacheco
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