Algures, no Alentejo, no dia 17 de maio de 2041
Numa breve passagem por Odemira, a Filipa e a Cláudia levaram-me até um edifício a que chamavam “escola”. Ao entrar, senti-me regressar meio século atrás, quando ainda dava aula, numa turma masculina, num edifício de duas salas separadas por uma parede atravessada pelo som das palmatoadas e o choro de crianças castigadas.
Para não escutar os gritos da professora da turma feminina, eu ensaiava com os meus alunos umas cançõezinhas, ou a minha escola saía do prédio e ia passear pela aldeia.
O que é uma “escola”? Em 1872, Eça de Queirós, assim a descrevia:
“Uma grilheta escura e suja: as crianças, enfastiadas, repetem a lição, sem vontade, sem inteligência, sem estímulo: o professor domina pela palmatória e põe o tédio da sua vida na rotina do seu ensino”.
Se substituirmos a “palmatória” por “violência simbólica”, as escolas dos idos de vinte pouco diferiam das suas congêneres do século XIX. Numa prosa que se mantinha atual, à distância de século e meio, Eça informava-nos das vivências escolares em edifícios de que restavam vestígios arquitectónicos, por exemplo, no tipo de construção “Conde de Ferreira “.
Eram escolas com um pé direito altíssimo, com uma inclinação de pedra junto às janelas, também altas, muito mais altas do que a altura dos alunos. Era impossível uma criança observar, dentro destas salas, o que se passava em torno do edifício. Se nos colocássemos ao nível do olhar dos infantes, apenas nos seria possível ver alguns ramos de árvore e uma ou outra nuvem. A par com as práticas descritas pelo Eça, mas com as devidas distâncias, poderíamos estabelecer alguns paralelos com as descrições dos estudos de Foucault.
A escola era um edifício? Na explicação do projeto do “Plano dos Centenários” era elucidativa a racionalidade que lhe presidiu. Esse projeto, que celebrava os oitocentos anos de nacionalidade e os trezentos da Restauração da Independência, surgia na sequência de um ciclone ocorrido em 1941. Estávamos na presença de uma razão de elevado coturno pedagógico…
Milhares de árvores foram arrancadas pelo vento. No acatar da sentença de Comenius, as escolas e as árvores convergiram num projeto de raiz. Para não desperdiçar madeira de tão boa qualidade, o ministério decidiu aproveitar a madeira das matas para atender a “uma necessidade gritante a nível nacional”.
O chamado “Plano dos Centenários” nasceu fruto do acaso e da necessidade. E o testamento de Joaquim Ferreira dos Santos, 1º barão, 1º visconde e 1º conde de Ferreira, assim rezava:
“Quero que os meus testamenteiros mandem construir e mobilar cento e vinte cinco casas para escolas primárias de ambos os sexos, nas terras que forem cabeças de concelho, tendo todas por uma mesma planta e com acomodação para vivenda do professor, não exercendo o custo de cada casa e mobília a quantia de 1 200$00 réis. E, pronta que esteja cada casa, será a mesma entregue à junta da paróquia”.
O prédio a que a Filipa e a Cláudia chamavam “escola” era um exemplar do Plano dos Centenários, era uma “escola desativada”. O ministério mandara fechar escolas com menos de dez alunos. As crianças eram transportadas para grandes “armazéns de docentes e discentes”, à medida que o efeito colateral da desertificação de comunidades isoladas era consumado.
“Escolas desativadas” se foram transformando em asilos de idosos, sedes de associações e até em casas de habitação. A Filipa e a Cláudia transformaram uma “escola desativada” numa ágora de uma comunidade de aprendizagem. Finalmente, esse prédio de uma “escola desativada” virava espaço útil.
Por: José Pacheco
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