Lisboa, 24 de maio de 2041
Em preâmbulos e entrelinhas, em pleno contexto da quarta revolução industrial, as medidas de política educacionaal continuavam a reproduzir um modelo de ensinagem caraterístico da primeira. Entre eufemismos e aspas teorizantes, o dito sistema continuava à deriva, deixando para os vindouros um rastro de reformas fósseis. Talvez os seus autores não tivessem lido o aviso do amigo Nóvoa:
“Durante muito tempo, as reformas sonharam que podiam mudar os sistemas educativos. Desgastaram-se em intermináveis arranjos de currículos, esquecendo os modos de organização do trabalho escolar”.
Referindo-se ao regime de ciclos, Hutmacher dizia que, ao entrarem no ciclo seguinte, os alunos experimentavam uma espécie de regressão. Mas, se os professores e legisladores eram de opinião de que a articulação era fundamental para a unidade da educação básica, por quanto tempo se prolongaria o predomínio da justaposição formal entre anos e ciclos, reproduzindo cartesianos vícios? Por que não questionar desenraizamentos culturais a que os alunos eram submetidos em idades tão vulneráveis?
Nos idos de vinte, os professores do ensino superior (haveria “ensino inferior”?) insistiam na queixa dos baixos índices de proficiência dos seus alunos. E lhes cabia alguma razão na crítica que faziam do modo como o ensino dito “médio” ensinava… e que era idêntico ao do “superior”.
Não se sabia se ser “médio” significaria estar no meio, ser algo “secundário”, ou ser segmento terminal. O que se sabia era que o dito “ensino médio” atirava a culpa para o “fundamental”. Este enjeitava responsabilidade e a projetava na “educação Infantil” (“infantil” seria adjetivo, que qualificava a educação?), que projetava a responsabilidade do descalabro da educação para a família. E a família, que “tinha as costas largas”, ficava sem saber quem acusar.
Pela via da sequencialidade regressiva, o exame de acesso ao dito “ensino superior” determinava o que seria o dito “ensino médio”. E este determinava os objetivos do dito “ensino fundamental”, contribuindo para a perenização de fenômenos como o da exclusão escolar e social.
Por que segmentar? Por que razão os manuais didáticos eram destinados a um “2º ano” do “1º ciclo”? Afinal, havia uma organização em “ciclo”, ou em “ano”?
A compartimentação estanque entre ciclos era mais uma manifestação absurda dos cânones de um paradigma educacional mecanicista – o paradigma da instrução – e originava rupturas traumáticas, perniciosos efeitos na psique dos alunos, que não transitavam entre ciclos de um mesmo ensino básico, mas entre comunidades escolares autistas.
Reparastes, certamente, na abundante utilização de aspas. Mostrava-se difícil dispensá-las, quando ainda se subdividia a educação em cartesianos segmentos e se tentava interpelar a praga da sequencialidade regressiva. Todo mundo rejeitava responsabilidade, condicionando as iniciativas dos legisladores e deitando a perder todo e qualquer esforço de mudança.
O vosso avô questionava. E era considerado “inoportuno”, “insuportável”, porque usava aspas. Era incômodo, porque havia extinguido as segmentações, na prática.
Quando, nos idos de vinte, eu assistia a palestras sobre “inovação” (mais aspas, porque de inovação essas palestras nada tinham), preocupava-me o fato de os palestrantes não acrescentarem ao discurso algo que seria indispensável acrescentar. Aquilo que transmitiam numa palestra não poderia ser concretizado numa escola segmentada, em práticas sociais do século XIX, ainda que entre aspas.
Por: José Pacheco
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