Caldas da Rainha, 26 de maio de 2041
Ovide Decroly foi médico, psicólogo e pioneiro da pedagogia experimental. Fundou duas escolas assentes nos princípios das necessidades biossociais humanas, cujo lema era “educar as crianças para a vida e através da vida”. Nos terrenos dessas escolas havia animais para criar e hortas.
Esse escolanovista recomendava uma atitude atenta e respeitosa em relação à originalidade da criança, à sua livre expressão e necessidades. Nas primeiras duas décadas do século XX, de algum modo, anunciou os trabalhos de Maturana, dado que a sua metodologia se fundamentava em princípios biológicos subjacentes à necessidade intrínseca do organismo humano, que era visto como algo que se adaptava às mudanças de acordo com as condições sociais. Afirmava que uma ética e uma filosofia, impregnadas com a ciência, eram a única maneira de encontrar soluções para os problemas que a humanidade enfrentava. Lede:
“Convém que o trabalho das crianças não seja uma simples cópia; é necessário que seja realmente a expressão de seu pensamento. A criança tem espírito de observação; basta não o matar”.
Meio século depois, na minha passagem pela prefeitura, subi ao sótão do velho edifício da Junta de Freguesia e encontrei uma biblioteca oferecida à autarquia. Os livros jaziam ao abandono, fustigados pela humidade, envoltos em teias de aranha, corroídos de bolor. A maioria das obras datava do século XIX. Alguns dos livros, já publicados no século XX, eram de autores da “Escola Nova”. Senti um misto de êxtase e indignação, perante uma preciosa coleção de livros de pedagogia arruinada pela incúria de prefeitos que me antecederam.
Quando procedia à transferência dos livros para um lugar salubre, onde os pudesse classificar e disponibilizar, um envelope caiu de um deles. Não encontrei a carta que ela contivera. Mas o remetente era Ovide Decroly. Li o endereço: “Professor Justino Viana, Rua de São Miguel”. O envelope estava meio rasgado e não se conseguia ler o restante do endereço.
Na Vila das Aves da década de vinte do século XX, não havia nomes nas ruas. Na Travessa Justino Viana, ninguém me soube dizer quem fora o professor doador de tão rica biblioteca. Embora o orago da vila fosse o São Miguel, concluí que restava tentar encontrar o seu paradeiro numa outra com o mesmo nome. E a mais próxima era aquela em que o vosso avô vivera o seu tempo da escola primária.
Fui recebido como “colega ilustre” (assim me chamaram). Convidaram-me para entrar num gabinete, que presumi ser da direção. Num canto, uma velha mesa estava atafulhada de processos e carregada de material escolar. Uma das pernas da mesa estava quebrada. Para manter a mesa na horizontal, o pedaço em falta fora substituído por uma pilha de velhos livros de atas.
Baixei-me, para ler a grossa capa do que estava por cima. Era um livro de atas de reuniões realizadas entre 1920 e 1930. Pedi para o retirar do montão de livros de suporte. Acederam ao meu pedido e me ajudaram a removê-lo. A perna quebrada da mesa tinha perfurado a capa e destruído várias páginas, mas pude ler algumas das atas. Eram valiosas descrições de resistência de professores à implantação da ditadura. As atas estavam assinadas por… Justino Viana.
Na Ponte do século XX, fizemos a transição para a “Escola Nova”. No século XXI, se fez uma “Escola da Comunidade”. No mês de maio de há vinte anos, o amigo João levou-me até à “Escola do Campo”. Nesse lugar, um século decorrido sobre o desaparecimento de Justino Viana e de Decroly, ajudei o João a encontrar a escola que os seus filhos e os filhos dos filhos dos seus filhos mereciam.
Por: José Pacheco
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