Santa Luzia, 8 de junho de 2041
Por vezes, chego a pensar que possais não acreditar no que vos digo, tal o absurdo das situações, que eu descrevo. Hoje, vos falarei de um tempo em que as escolas se ornamentavam de inúteis dispositivos. Como aquele que descrevo nesta cartinha, memória de um tempo em que a pedagogia andava arredia das escolas, de quando ainda estavam submetidas a um rígido controle e carentes de autonomia.
O “Conselho de classe” já fora objeto de inúmeros artigos, dissertações e teses. Com outra designação, já o testáramos na Ponte, ao longo de mais de duas décadas, e o tínhamos dispensado. Ressalvadas as exceções, as reuniões desse órgão eram rituais absurdos, decorrentes de um absurdo maior – não era apenas esse conselho que deveria ser substituído por algo que fizesse sentido, era a escola que deveria interpelar e reelaborar a sua cultura.
Era vasto o conjunto das suas atribuições: “deliberar sobre objetivos, metodologias, formas e critérios de avaliação, a inter-relação com a família, adaptações curriculares para alunos com necessidades especiais”. Poderia constituir-se num espaço de gestão democrática, mas nele predominavam atitudes autoritárias e discriminatórias. Era nítida a diferenças entre o espírito dos normativos que regiam o seu funcionamento e a sua prática. Órgão pesado e burocratizado, juntava professores de diversas disciplinas com coordenadores pedagógicos, supervisores, orientadores educacionais e até alunos.
Na prática e contrariamente ao que a lei estabelece, a preocupação do conselho não era a de dinamizar a gestão pedagógica, mas de classificar alunos. E classificar de modo ingênuo e inútil. Confundia-se avaliar com aplicar prova; confundia-se avaliação com classificação. A organização interdisciplinar e a centralidade da avaliação como foco de trabalho andavam ausentes das reuniões. Prevalecia o ritual que restringia o ato de avaliar ao veredicto de aprovado ou reprovado, ao “fechar as notas”, elencar queixas e encaminhá-las para especialistas.
Cito registros de observação de uma reunião de Conselho de Classe, onde se faz uso e abuso de apreciações subjetivas:
Ele é muito desorganizado, é muito disperso, não faz nenhuma tarefa.
Não seria um PPDA?
Ele é atirado. O próprio jeito de ele caminhar. Caminha assim, ó! Com os pés arrastando.
Então, a gente pode fazer um PPDA e colocar no PPDA isso.
Deve ser PSAE…
Havia siglas para tudo, menos para avaliar. O pendor burocrático desse inútil e pernicioso órgão é evidente nos normativos:
“O conselho de classe reunir-se-á, ordinariamente, conforme calendário anual divulgado pelo nível central da Secretaria Municipal de Educação; o Conselho de Classe Extraordinário reunir-se-á conforme previsto na Deliberação E/CME n°16/2008, desconsiderando a Resolução SME mencionada no preâmbulo da referida legislação.
Eis algumas das tarefas impostas a um conselho de classe:
“Índices de Aprovação dos dois últimos anos. Os dados devem ser apresentados através de números e porcentagens. Última pontuação obtida no IDEB. Meta proposta pelo IDEB para 2009 (…).
Netos queridos, crede que as escolas dos idos de vinte chegaram ao ponto de serem geridas de modo semelhante à gestão de uma repartição de registo civil, ou de uma padaria. Nas decisões, predominavam critérios de natureza técnico-instrumental e burocrática. A Escola definhava, dependente de um modelo de direção, gestão e administração caduco. A enfermidade da escola ainda se prolongou por longos anos, deixando atrás de si um rasto de ignorância e corrupção.
Por: José Pacheco
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