Condeixa-a-Nova, 22 de junho de 2041
Aceitei o convite de dois amigos professores e fui assistir a uma reunião (que designaram de) “pedagógica”. Aguentei quase uma hora de leitura de regulamentos, mais meia hora de comentários (inenarráveis) sobre alunos. Até que uma professora tomou a palavra:
“Eu acho que o plano de recuperação não está a resultar, acho que não vale de nada, só nos dá trabalho”.
Quando os professores começavam a “achar”, eu não conseguia manter-me calado:
“A senhora está a falar do plano de “recuperação de aprendizagens”, que o ministério inventou para reduzir as perdas provocadas pela pandemia?
“Não, colega! Você não percebeu. Isso já fizemos. Estou a falar de um plano de recuperação de uma aluna deficiente”. – respondeu a senhora, apoiada num complacente sorriso.
Não me faltou vontade de contrapor ao conceito de “aluna deficiente” o conceito de “práticas deficientes”, mas me contive. Eu era um convidado, não quis estragar o bom ambiente. Aliás, os dois professores que me tinham convidado aconselhavam-me ser discreto, em discretas mensagens não-verbais. Os restantes deveriam ter adivinhado os meus pensamentos, dado que me fitaram de um modo levemente hostil.
A professora olhou em volta. Apercebeu-se do apoio dos colegas, e retomou a fala:
“Estava a dizer que essa aluna não consegue acompanhar as minhas aulas”.
Eu poderia ter perguntado se as aulas acompanhavam a aluna, mas mandava a prudência que não perguntasse. E o discurso continuou no mesmo tom:
“A aluna atrasou-se relativamente à turma”.
Poderia perguntar pelo que fez a “turma” para recuperar a aluna do atraso, mas não o fiz. Sentados em torno de uma mesa ornamentada com computadores, os professores não retiravam os olhos de mim. Sosseguei-os com um sorriso amistoso. E a reunião continuou, ordeiramente, como convinha, até que a professora rematou o discurso:
“Já vimos que esta aluna é deficiente. Não deveria estar numa turma normal. Eu acho que deve ir para uma das turmas problemáticas que aí temos”.
A emoção me traiu, me deu voz. Não consegui suster o ímpeto da interpelação:
“A senhora importar-se-á de explicar o significado de alguns termos que utilizou? Só para ver se eu entendi bem”.
Reagiu colérica e sarcástica:
“Eu fui bem clara no que disse. Mas, faça o favor, colega!
Eu fiz o “favor”:
“O que é uma “turma normal”?
Eu poderia ter perguntado: o que é uma “turma”? Mas não quis ir tão longe. Nem conseguiria. Vi-me rodeado de silêncio e de olhares furibundos.
Mantendo o meu linguarejar num nível soft, preparava-me para completar a pergunta, quando se instalou um pandemónio na sala. Aplicando uma técnica em que certos professores são especialistas, um coro de protestos desabou sobre este vosso avô:
“Eu vou-me embora! Não estou para aturar isto! A reunião acabou!”
E se foram.
Só dois professores ali ficaram, aqueles que me tinham convidado, cabisbaixos, em silêncio. À saída, comentavam que já não tinham mais nada a fazer naquela escola, que era um caso perdido. Apenas esperariam o fim do ano letivo, para irem embora dali.
À passagem pelo bar, apercebi-me de que eles dirigiram um olhar de “Pedro renunciante” aos furibundos colegas, um gesto cúmplice de apaziguamento, que lhes garantiria a sobrevivência na escola.
Chegados ao portão, pediram-me desculpa. O porteiro estava com “cara de poucos amigos” (talvez já estivesse avisado da indesejável presença). Abriu o portão com um gesto ameaçador. Esgueirei-me pela frincha, acelerei o passo e nem olhei para trás.
Esta estória do tempo da velha escola é longa. Completá-la-ei na cartinha de amanhã.
Por: José Pacheco
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