Ilha Comprida, 17 de julho de 2041
No início dos anos 70, com o desaparecimento de Salazar da cena política portuguesa, a ditadura entrou num período de democracia mitigada, durante a qual movimentos pedagógicos ressurgiram. Que me seja permitido contar uma história desse tempo, passada nos cafundós do Portugal. E falar de uma Maria, que tinha fé na vida e na possibilidade de remissão dos pecados da escola.
Tentava formar uma equipe de projeto e os seus alunos aprendiam mais, e bem melhor do que no tempo em que escutavam aula. Mas outros alunos eram perseguidos por funcionários e repetidamente castigados com a “proibição de ida ao recreio”.
Indagando o porquê da situação, tomou conhecimento de que a diretora da sua escola só ia à escola dois dias por semana. Nos restantes dias, a turma da diretora era entregue aos cuidados de uma faxineira.
Quando procurou saber o porquê dos gritos da desesperada funcionária, foi-lhe dito:
“A senhora diretora é vendeira”.
Isso mesmo, queridos netos, tal e qual lhe foi respondido. Embora possa parecer inverossímil, o fato é que a senhora diretora deixava a sua turma entregue a uma auxiliar de ação educativa e ia vender frutas e legumes em cidades da região.
Numa reunião de conselho escolar, a Maria ousou chamar a atenção da diretora para as consequências da sua atitude, responsabilizando-a pelas escassas aprendizagens dos alunos, pelo sofrimento da faxineira e pelo perturbador barulho provindo da sala da ausente diretora.
Para que se entenda o cenário do drama, explicarei o que era um conselho escolar. Nas manhãs de sábado, dado que cada qual se refugiava na solidão da sua sala de aula, não havia assunto de conversa comum. As professoras controlavam o tédio de três horas de reunião, tricotando, comentando episódios de novela das oito, ou comprando produtos de beleza, que a diretora também vendia.
A inusitada interpelação da Maria provocou forte reação da diretora:
“Não lhe admito impertinências! Quem manda aqui sou eu! E não lhe devo explicações!”
E por ali se quedou o quiproquó, concluindo-se a reunião com a rotineira assinatura da obrigatória ata, feita de assuntos que as professoras presentes sempre se encarregavam de inventar. Naquele sábado, a Maria registrou na ata a resposta dada pela diretora à sua interpelação.
Em meados de dezembro, as professoras foram celebrar o Natal junto das suas famílias. Em janeiro e como era costume, todas assinariam o livro de ponto, dado que não se tratava de gozar “férias de Natal”, mas de uma interrupção de atividade letiva.
Por acaso, ou talvez não, a diretora leu a ata. Furiosa, consultou aliados, na secretaria de educação. Aconselharam-na a chamar à escola as professoras, durante o período de “férias”, para que subscrevessem uma nota de repúdio pelo desacato cometido pela Maria e a juntassem à ata, acompanhada de uma declaração de apoio à senhora diretora. E todas foram avisadas de que deveriam assinar o ponto dos dez dias de “férias”. Todas… exceto a Maria.
No retomar das aulas, a Maria encontrou a sua folha de ponto “trancada”, com dez faltas “a vermelho”, e foi informada de que seria objeto de processo disciplinar, “por ter faltado à escola durante duas semanas”.
Durante o período de suspensão com que foi punida, os dias da Maria foram feitos de insônia, de choro, de doses maciças de ansiolíticos e frequentes visitas ao psiquiatra. Após uma longa via-sacra, mudou de profissão.
Entretanto, misteriosamente, o livro das atas levou sumiço. E a senhora diretora continuou sendo vendeira, mantendo um segundo emprego, o de professora, um dia por semana.
Por: José Pacheco
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