Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DXCVIII)

Bom Jesus dos Perdões, 22 de julho de 2041

Há muitos, mesmo muitos anos, no tempo em que não se falava de “inclusão”, quando ainda não tinha sido inventado o TDAH nem Ritalina era enfiada goela abaixo nos ditos diferentes, por caminhos que a pedagogia não recomenda, o professor Alfredo “incluiu” socialmente um aluno “diferente”.

Era o primeiro dia do ano letivo. O Alfredo iria assumir os cuidados de uma turma da primeira classe. Cuidou de acalmar os pequenitos, que iam chegando agarrados às saias de mães nervosas. Era choro por todo o lado. A todo o momento, as crianças ameaçavam retomar o choro interrompido pelas doces palavras do jovem professor.

O senhor professor dá-me licença? – e logo algumas das já aquietadas mães aproveitavam para ensaiar um retorno e lançar ansiosos olhares sobre a prole, que, já dentro da sala de aula, retomava o ritmo do soluçar e desembocava numa nova e ruidosa choradeira. 

Contou os alunos. Pela lista, que a diretora lhe entregara, faltava um. Apercebendo-se de que a situação a resolver não se encontrava dentro, mas fora de muros, o professor alterou a estratégia. Saiu da sala, fechou a porta atrás de si e a ela resolutamente se encostou. 

O que viu fez com que o seu semblante não refletisse tanta amabilidade como antes. Uma suposta mãe debatia-se impotente perante investidas e pontapés do seu rebento, acompanhadas de tais imprecações que fariam corar de vergonha um surdo. 

“O senhor doutor do posto médico disse-me que ele é uma criança especial, que tem sistema nervoso. O meu marido até ouviu – não foi, ó Quim? – que a gente não o pode contrariar. Eu ainda pensei em levá-lo a outro especialista dos nervos, mas tenho lá posses! ‘Inda se me dessem um suicídio [leia-se “subsídio}! Já entreguei a papelada, há que tempos… e nada!”

“O garoto é levado do diabo!” – comentavam, entre dentes, alguns dos presentes. 

“Metê-lo assim na sala, nem pensar!” – pensou o professor. Pegou no aluno ao colo e, a custo, foi com ele até ao alpendre das traseiras. 

Quando se encontrou a sós com criança, sentou-a na beira do muro e falou-lhe baixinho e ao coração. Disse-lhe tudo o que seria possível dizer-se para sossegar o espírito de uma criança. E o infante presenteou-o com um chorrilho de impropérios: 

Deixa-me, filho da p…! Larga-me!” 

O professor respirou fundo, contou até vinte, voltou a respirar mais fundo e contou mais uma vez. O professor não era dos que acreditavam no ditado popular que diz que “moço que não é castigado não será cortesão nem letrado”, mas já começava a desesperar. 

O fedelho esperneava e gritava: 

Deixa-me, filho da p…!” 

A mão do professor foi mais lenta que o pensamento e só parou na face do pequeno. Mas foi a mesma mão que a acariciou e enxugou as últimas lágrimas, enquanto os seus braços envolveram a criança num abraço penitente. 

A criança percebeu que a sua performance tinha acabado e que com aquele adulto – a seus olhos bruto e terno – a cena do grito e da canelada não surtia efeito. Por receio de nova palmada, ou por razões que a razão desconhece, o pequeno lá foi, a par do novo mestre, sala adentro, como se nada de especial tivesse sucedido. 

À sua passagem, uma mãe ainda comentou:

Este professor é que tem jeito para as crianças! 

Equidistante dos outros dois episódios, este confirma o que já dizia um poeta: as mãos “são a guerra e são a paz”. 

Juntarei ao texto algumas palavras por detrás das palavras. Se é verdade que bater numa criança é um ato de cobardia, também sabemos o que Makarenko escreveu no seu “Poema Pedagógico”. Quem ainda o não leu, não sabe o que perdeu. Está lá tudo o que precisamos saber, para socialmente incluir. 

 

Por: José Pacheco

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