Bom Jesus dos Perdões, 22 de julho de 2041
Há muitos, mesmo muitos anos, no tempo em que não se falava de “inclusão”, quando ainda não tinha sido inventado o TDAH nem Ritalina era enfiada goela abaixo nos ditos diferentes, por caminhos que a pedagogia não recomenda, o professor Alfredo “incluiu” socialmente um aluno “diferente”.
Era o primeiro dia do ano letivo. O Alfredo iria assumir os cuidados de uma turma da primeira classe. Cuidou de acalmar os pequenitos, que iam chegando agarrados às saias de mães nervosas. Era choro por todo o lado. A todo o momento, as crianças ameaçavam retomar o choro interrompido pelas doces palavras do jovem professor.
“O senhor professor dá-me licença? – e logo algumas das já aquietadas mães aproveitavam para ensaiar um retorno e lançar ansiosos olhares sobre a prole, que, já dentro da sala de aula, retomava o ritmo do soluçar e desembocava numa nova e ruidosa choradeira.
Contou os alunos. Pela lista, que a diretora lhe entregara, faltava um. Apercebendo-se de que a situação a resolver não se encontrava dentro, mas fora de muros, o professor alterou a estratégia. Saiu da sala, fechou a porta atrás de si e a ela resolutamente se encostou.
O que viu fez com que o seu semblante não refletisse tanta amabilidade como antes. Uma suposta mãe debatia-se impotente perante investidas e pontapés do seu rebento, acompanhadas de tais imprecações que fariam corar de vergonha um surdo.
“O senhor doutor do posto médico disse-me que ele é uma criança especial, que tem sistema nervoso. O meu marido até ouviu – não foi, ó Quim? – que a gente não o pode contrariar. Eu ainda pensei em levá-lo a outro especialista dos nervos, mas tenho lá posses! ‘Inda se me dessem um suicídio [leia-se “subsídio}! Já entreguei a papelada, há que tempos… e nada!”
“O garoto é levado do diabo!” – comentavam, entre dentes, alguns dos presentes.
“Metê-lo assim na sala, nem pensar!” – pensou o professor. Pegou no aluno ao colo e, a custo, foi com ele até ao alpendre das traseiras.
Quando se encontrou a sós com criança, sentou-a na beira do muro e falou-lhe baixinho e ao coração. Disse-lhe tudo o que seria possível dizer-se para sossegar o espírito de uma criança. E o infante presenteou-o com um chorrilho de impropérios:
“Deixa-me, filho da p…! Larga-me!”
O professor respirou fundo, contou até vinte, voltou a respirar mais fundo e contou mais uma vez. O professor não era dos que acreditavam no ditado popular que diz que “moço que não é castigado não será cortesão nem letrado”, mas já começava a desesperar.
O fedelho esperneava e gritava:
“Deixa-me, filho da p…!”
A mão do professor foi mais lenta que o pensamento e só parou na face do pequeno. Mas foi a mesma mão que a acariciou e enxugou as últimas lágrimas, enquanto os seus braços envolveram a criança num abraço penitente.
A criança percebeu que a sua performance tinha acabado e que com aquele adulto – a seus olhos bruto e terno – a cena do grito e da canelada não surtia efeito. Por receio de nova palmada, ou por razões que a razão desconhece, o pequeno lá foi, a par do novo mestre, sala adentro, como se nada de especial tivesse sucedido.
À sua passagem, uma mãe ainda comentou:
“Este professor é que tem jeito para as crianças!
Equidistante dos outros dois episódios, este confirma o que já dizia um poeta: as mãos “são a guerra e são a paz”.
Juntarei ao texto algumas palavras por detrás das palavras. Se é verdade que bater numa criança é um ato de cobardia, também sabemos o que Makarenko escreveu no seu “Poema Pedagógico”. Quem ainda o não leu, não sabe o que perdeu. Está lá tudo o que precisamos saber, para socialmente incluir.
Por: José Pacheco
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