Bissau, 24 de setembro de 2041
Uma amiga, consciente da necessidade de humanizar o ato de aprender, entristecia com a situação dos idos de vinte:
”A tristeza embaça nossa visão. Deixamos de enxergar a responsabilidade que temos em meio a todo esse caos”.
Era imenso o seu desejo de oferecer o melhor de si àqueles que com ela conviviam e aprendiam. Havia compreendido que não se tratava de “dar boas aulas”, mas de se assumir professora indignada, sensível, ética, esperançosa.
Na “Pedagogia da Esperança” Freire disse-nos que os educadores brasileiros deveriam suliar (e não nortear) as suas reflexões e práticas. E afirmava: “Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão”.
Na “ação-reflexão”, reafirmava o Mestre. Não propunha a acadêmica teorização de teorias teorizadas, produzida por freirianos não-praticantes. A dialética freiriana partiria de uma prática geradora de reflexão e de… ação. Educar seria assumir responsabilidade social por seres geneticamente sociais e geneticamente históricos criadores de vínculos. A arte de conviver (viver com) exigia uma atitude de abertura, o reconhecimento do outro e o respeito pela pessoa do outro. Mas onde se poderia aprender essa arte? Onde concretizar o Amor e a Coragem? Na Escola?
Fazer escola à maneira freiriana seria alimentarmo-nos da esperança enquanto necessidade ontológica, de uma esperança que, nas palavras do Mestre, requeria uma práxis, para se tornar concretude histórica. Freire havia dito que a escola não mudaria a sociedade, que a escola mudaria as pessoas e que as pessoas mudariam a sociedade. Porém, na situação de secretário de educação, se apercebeu que, se a sociedade não mudasse a escola, onde estaria a escola que mudaria as pessoas? Onde encontrar pessoas capazes de mudar a sociedade? Como seria possível interromper o círculo vicioso dos “regimes de medo”?
Nos idos de vinte, talvez já fosse tempo de escutar Freire, realçando na sua fala a urgência de expulsar o sarro da velha escola, ao invés de importar novos modelos de aula enfeitados com pandêmicos “híbridos”. De nos falar da capacidade do ser humano se relacionar com o seu semelhante, da capacidade de inter-relacionamento, do diálogo, do encontro entre sujeitos e na relação entre o sujeito e objeto. Mas, nesses sombrios tempos, a ignorância prosperava onde ocultos interesses denegriam a memória de Freire, uma récua política e burocrática o execrava. Apelava-se ao “regresso às aulas”, ao regresso a um passado de onde a educação brasileira nunca havia saído, à mesmice instrucionista, antípoda da proposta freiriana.
Vivíamos num tempo em que havia quem pugnasse por “tirar Paulo Freire das escolas”. Muitos o detestavam, porque denunciava a exclusão, a reprodução de uma educação “bancária”. Lideranças tóxicas, uma administração autoritária e ridículos tiranos não perdoaram ao Mestre ter evidenciado a natureza política (e amorosa) do ato de educar. E abusavam da liberdade de expressão, para causar a sua segunda morte – a da memória.
Em Pernambuco, terra natal do Mestre, o fanatismo de alguns energúmenos chegou ao ponto de ousar retirar o seu nome, que havia sido dado a uma escola. E o amigo Zé Eustáquio até chegou a afirmar que Paulo Freire nunca fora aplicado na educação brasileira, que, nas universidades, era apenas título de biblioteca, ou nome de salão. A educação caíra em mãos negacionistas. Mas, nesse tempo, ainda havia freirianos, graças a Deus!
Queridos netos, quando já contava setenta anos, me proibi de desistir, decidi reaprender a freiriar.
Por: José Pacheco
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