Cidade da Praia, 25 de agosto de 2041
Vai para uns vinte anos, redigi algumas reflexões sob a forma de crônicas, mais ou menos, curriculares. E pedi aos educadores que rezassem, mas que rezassem com convicção, para que o clamor das suas preces pudesse chegar aos ouvidos dos membros do Conselho Nacional de Educação e os livrasse de cometer a imprudência de aprovar um espúrio documento, que dava pelo nome de BNCC.
Não se tratava de assunto sério, pelo que recorri à ironia, para compensar efeitos perversos da baixa política educacional. Perguntava se teria havido um exercício de futurologia. Os autores da base acreditariam na pertinência dos conteúdos selecionados, quando os alunos de então virassem adultos? Conteúdos como “mesóclises, dígrafos e piroclásticas” deveriam fazer parte da base curricular? Por que razão eram readotados arcaísmos como “anos iniciais”, “anos finais”, “salas de aula”?
Tudo em vão… De nada valeu gastar um precioso tempo, comparecendo em audiências públicas no CNE e no Senado Federal. A excrescência normativa foi aprovada.
Houve quem lucrasse milhões em inúteis “formações para a BNCC”. Somente na década de trinta a espúria lei foi revogada, dando lugar a uma base curricular à medida do século XXI.
A minha desconfiança relativamente às decisões curriculares era antiga, sobretudo, desde quando lera uns artigos de um pedagogo chamado Schubert, que dizia:
“Quando questões fundamentais de currículo não são dirigidas por educadores, os caprichos econômicos ou políticos formam o caminho e as práticas educacionais são governadas à revelia”.
Na década de setenta, fui selecionado para compor um grupo de trabalho a quem competia elaborar uma base curricular. Tratava-se da primeira iniciativa de substituição do currículo da escola da ditadura salazarista por um currículo “democrático”. Em 1975, um “programa de capa laranja” (assim era conhecido) fora improvisado. Competia-nos trocar o “currículo laranja” por outro de capa verde. E a troca não seria de cor…
Na Ponte, tínhamos participado na experiência de desenvolvimento curricular chamada “fase de escolaridade”. Concluímos que o regime “ideal” deveria ser a “fase única”. O ministério decidiu ignorar o estudo. Instituiu a segmentação do ensino básico em três ciclos. Sabe-se lá por quê!
A amarga surpresa foi acompanhada por um incidente crítico. Ao final de muitos dias de árduo trabalho, fomos convocados para um “meeting”. O produto desses dias de intenso labor, o programa de capa verde, seria apresentado. Concebemos um currículo sem divisão em anos de escolaridade, mas a versão final estava subdividida em… anos de escolaridade.
Quisemos saber o porquê da alteração. Nos bastidores do “meeting”, um inspetor do ministério me confidenciou que os editores e livreiros tinham exigido vender manuais didáticos todos os anos e não de quatro em quatro anos.
Quando jovem, perguntava por que razão deveria aprender certos conteúdos. Respondiam:
“Quando fores grande, irás precisar”.
Não precisei.
Ao longo dos meus noventa anos, por exemplo, nunca precisei de utilizar raíz quadrada. E, se nos idos de vinte, dela precisasse, a Internet me diria o que fazer. Apenas precisaria de aprender a pesquisar, a aprender. Isso a escola não ensinava.
Por detrás da base curricular da ditadura de Salazar, como da BNCC brasileira, havia pressupostos ideológicos, preconceitos, pedagogia fóssil e um modelo de escola, que, em pleno século XXI, continuava a fazer estragos.
Por ter herdado princípios da revolução industrial, ela naturalizara o insucesso.
Por: José Pacheco
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