Torre da Marinha, 12 de setembro de 2041 

Entregaram uns papéis ao professor, acompanhados de um aviso:

“Cuidado com o Teixeira! Dizem que é autista e, além disso, é mal-educado e preguiçoso”.

Estava quase a fazer treze anos, na primeira classe. Tinha saltado de professor para professor, em turmas indesejadas. Era conhecido pelo nome de família, pois o nome próprio ninguém parecia conhecer.

O professor desta história era novo, não possuía a experiência dos mais velhos, nem a ciência dos especialistas da “educação especial”. Pouco sabia de autismos. O Teixeira era autista. Pois! E o que é que o rótulo ajudava? E, se o professor estava sozinho na sua sala, com os seus alunos e mais um autista, sozinhos estavam os colegas das outras salas com os seus alunos.

Que pior forma de autismo que esta entre professores? Tinham-lhe ensinado tudo no curso, exceto o saber educar um autista.

“O colega imponha-se, o colega defenda-se!” 

O professor defendeu-se. Registou alguns comportamentos:

“O Teixeira vive numa profunda tristeza, gosta de estar sozinho”. 

Mas a verificação pouco ajudava. Se procurava aproximar-se, ele fugia-lhe de imediato, como uma gata que tinha lá em casa. Aos treze anos, o Teixeira não sabia ler nem escrever. Se sabia, não o mostrava. Mas precisaria ele, mais que tudo, de saber ler e escrever?

O professor veio a saber mais tarde, pelos livros e por “incidente crítico” que o Teixeira não era, nem nunca tinha sido autista na sua vida. Tinha sido criado entre ovelhas, das cinco horas da madrugada ao meio-dia de todos os dias. Tinha vivido entre uma casa vazia e o vazio de uma escola, entre as treze e as dezoito horas de todos os dias. E deitava-se todos os dias com as galinhas.

Há meses que o professor se acercava matreiro do Teixeira, sem ir pelo atalho das letras e dos números. Tinha sido rejeitado mil vezes, talvez pagando as rejeições que o Teixeira tinha sentido anos a fio. Mas também já tinha conseguido arrancar algumas palavras ao dito “autista”.

Num sábado de manhã, quando o professor esperava o ônibus que o levaria para o aconchego do fim de semana em casa, viu o Teixeira a atravessar a estrada varejando o rebanho. Arredou as ovelhas para um valado e sentou-se numa pedra a uma distância prudente da paragem do autocarro. Com o cajado batia pedras para o outro lado da estrada, como quem estava distraído.

Estava quase na hora de passar o ônibus. O professor não poderia dar-se ao luxo de o perder, pois só teria outro lá para o meio da tarde. Mas a tentação foi mais forte do que a prudência. Lançou olhares insistentes para a curva da estrada de onde haveria de surgir o ansiado transporte. Lançou outros tantos olhares para o lado da estrada onde estava o Teixeira. E o dilema resolveu-se. Deu alguns passos com a mala na mão na sua direção, como quem se acerca de um pássaro que, a qualquer momento, pode levantar voo. Captou-lhe o olhar. Sorriu. O “autista” não fez menção de se levantar.

O professor percorreu os metros que faltavam, hesitante, deitando olhares para trás, não viesse aí ônibus. Primeiro, de pé, a falar sozinho para o Teixeira e este a olhar os paralelos e a bater pedras para o outro lado da estrada. Uma olhadela ao relógio e sentou-se devagar para não assustar o pássaro. Pousou a mala. O Teixeira já respondia, ora com a cabeça (que sim, que não), ora com os ombros (quero lá saber!).

Na paragem, ninguém. O condutor ainda reduziu a velocidade, ainda deitou um olhar para a mala pousada nas pedras à margem da estrada. Faltou coragem para estender um braço e fazer-lhe paragem, porque o outro estava, fraternalmente, pousado sobre o ombro do “autista”.

 

Por: José Pacheco