Lavradio, 22 de setembro de 2041
A Guidinha tinha treze anos, metade contados na escola. A professora era boazinha e tinha jeito para ensinar. Só lhe custava entender certos discursos, quando a lição saía do livro e se espraiava pela comunidade. E não havia dicionário que lhe valesse na aflição. Ela lá ia decifrando as frases proferidas pelos companheiros pelo sentido geral. E por aí se quedava, sem confessar a sua fraca compreensão, pois é bom de ver que a uma professora se admitia tudo… exceto a ignorância.
Estávamos no primeiro dia das “Férias de Natal”. Pelo fim da manhã, a Guidinha passou pela escola, de almeiro na mão. A professora preenchia as fichas de informação trimestral e aproveitou a presença da pequena, para dela se servir de emissária.
“Ó Guida, queres levar a ficha ao teu pai? Olha que ele vai ficar satisfeito, já estás melhor na caligrafia. Ele que não se esqueça de assinar, aqui, ao fundo. O teu pai sabe ler e escrever?”
“Sabe, sim senhora, minha senhora. Ele até fez a quarta como adulto. E té calha bem qu’ eu vou ir levar-lhe o presigo ó trabalho.”
“Então, vai! E não te demores!”
A Guidinha não levou meia hora a voltar. Vinha chorosa, meia face avermelhada e os olhos no chão.
“Que te aconteceu, rapariga?” – demandou a professora.
A Guidinha continuava de olhos no chão, a voz presa na garganta.
“Onde puseste a ficha, rapariga? Já está assinada?”
“A culpa foi da senhora!” – volveu-lhe a pesarosa Guidinha.
“Culpa? Culpa de quê? Explica-te que eu não estou a perceber nada e já estou a perder a paciência!
A Guidinha abanou a cabeça e, com voz embargada, acrescentou:
“Cand’ acheguei ó trabalho do meu pai, tropei à porta e logo qu’ ele abriu, dei-lhe a folha, como a senhora m’ amandou.”
“Sim. E então? Ele leu?”
“Ai não, que não leu! Leu, sim senhora, minha senhora.”
“E então? Despacha-te lá!”
“E adei, bem cá toma, assentou-me uma poleia e por pouco não me mirava c’ um grande rebo!”
“??? Não estou a entender… E ele não disse nada?”
“Disse, sim senhora, minha senhora. Disse qu’ eu era a vergonha da cara dele.”
“Vergonha? Vergonha, por quê?”
“Porque leu na ficha que a senhora tinha escrito que eu já tenho letra “legível”.
“Mas isso é bom. Ter a letra legível é uma coisa boa” – retorquiu-lhe a professora.
“É , é!… Mas, mal ele leu, disse logo “Com qu’ então tu tens a letra legível?! Não tens vergonha? Ora toma! E enfiou-me uma lapada qu’eu até contei as caleiras todas, uma a uma!”
Confusa, a professora rematou:
“Trouxeste, ao menos, a ficha de informação?”
“Não, minha senhora. O meu pai alagou-a e, depois, atirou-a para uma toca.”
A jovem professora deu-se ares de ter decifrado a resposta e despachou a Guidinha, dizendo-lhe que sossegasse, que depois iria falar com o pai dela.
A Guidinha não tinha culpa de que a caneca se tivesse virado no meio da contenda e a ficha tivesse ficado encharcada em vinho tinto. O “atirar da ficha para uma toca” é que não se encaixava totalmente na sua representação do episódio. Mas, também não seria necessário. A professora tinha a explicação à mão de semear:
“Eles não entendem. São uns analfabetos, uns ignorantes. Os pais resistem em colaborar com a escola. É uma questão de mentalidade”.
Ela não sabia que, antigamente e com maior frequência do que pensávamos, o professoral analfabetismo em culturas não letradas introduzia “ruídos” na comunicação. Alguns professores ainda não tinham tido tempo para ler o Basil Bernstein. Hoje, já entendem as diferenças entre “códigos restritos e elaborados”. Antigamente, era a Guidinha quem pagava as favas, porque o dardo da ficha de informação nunca se transformou em… boomerang.
Por: José Pacheco
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