Pinhal Novo, 26 de setembro de 2041
Nas escolas do tempo de que vos venho falando, tardava o reconhecimento da dessemelhança. Enquanto esperava que fossem realizados debates sobre o que deveria ser uma “Carta Educativa”, fui participando em debates. Num deles, um autarca pediu-me colaboração e justificou o pedido:
“Porque o professor trabalhou naquela escola dos deficientes, não foi?”
Tive o privilégio de ter trabalhado, durante cerca de trinta anos, numa “escola diferente”, que nada inventara. Estava tudo (teoricamente) inventado.
A Ponte era “diferente”, porque sempre acolhera alunos que outras escolas recusaram, expulsaram, ou, de algum modo, negaram o direito à educação. Também era “diferente” porque mantinha as suas portas abertas para todos quantos desejavam visitá-la, estudá-la (ou até mesmo devassá-la…) – quantas escolas abriam as suas portas, a qualquer hora de qualquer dia, para acolher estranhos?
Mesmo em tempos de crise, a Escola da Ponte jamais se fechou na sua concha. Aliás, era útil para quem a visitasse, pois compreendia não haver escolas perfeitas. A Ponte era feita de beleza e de humanas misérias, como qualquer outra escola.
Para melhorar as práticas da Ponte, viajei por muitos países, visitando escolas, cujas práticas nos ajudaram a trabalhar com os alunos ditos “diferentes”. Mas, também, deparei com excepções, melhor dizendo, decepções. Há cerca de vinte anos, ouvi falar de uma escola estrangeira, considerada modelo de “integração”. Quis ver, para aprender. Cheguei. Fui conduzido para um salão amplo. No meio do salão, um piano. No piano, um velho de estatura imponente (soube, depois que seria o diretor) tocava uma marcha. Os alunos entravam no salão, em duas filas, marchando a compasso. E lá vinham, na cauda do pelotão, os ditos alunos “diferentes”.
Finda a cerimónia, que me fez recordar o tempo em que eu fazia exercícios militares, os alunos voltaram às suas salas. Não me foi dado ver o que lá dentro acontecia. Fui muito recebido, bem tratado. Findo o “meeting”, fui espreitando, através dos vidros (discretamente), para as salas que ladeavam o corredor que conduzia à porta, onde me despedi do simpático diretor. Em nenhuma das salas consegui vislumbrar a presença de um aluno “diferente”. Ter-se-iam evaporado?
Já longe da vista do diretor, dei uma volta ao edifício e encontrei resposta – ligada por um longo corredor ao edifício principal, lá estava uma sala repleta de “diferentes”. Bem longe dos… “normais”
Numa outra ocasião, fui fazer uma palestra, a convite de uma escola. Cheguei com duas horas de antecedência sobre a dita. Aguardei na sala dos professores. Chegado o intervalo, acidentalmente, escutei conversas sobre alunos “diferentes”:
“Tem algum jeito, colega, que os deficientes, agora, também venham para o segundo ciclo? Puseram dois na turma a que dei aula. Ficaram o tempo todo lá no fundo, que eu não tenho preparação para trabalhar com deficientes!”
No âmbito dos trabalhos de uma comissão encarregada de tomar conhecimento de “boas práticas”, visitei várias escolas. Uma delas era conhecida por, ao que se dizia, ter desenvolvido uma “experiência pedagógica bem-sucedida”.
O encontro da comissão com a Direção ficou marcado para a tarde. Quebrando o protocolo, eu fui até lá… de manhã. Entrei. Ninguém me perguntou ao que ia. Presumo que me tenham tomado por um dos muitos professores da escola. Percorri espaços como quis. Da biblioteca à cantina, da reprografia ao bar, do recreio à sala dos professores, até encontrar alguns “diferentes” segregados, numa “sala de NEE”.
Por: José Pacheco
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