Reguengo Grande, 3 de outubro de 2041
Nos idos de vinte, como na década de setenta, precisávamos de menos teorizadores e mais concretizadores, mais esperançosos práticos e menos feriríamos não-praticantes.
Os donos do “sistema” continuavam a impor o “serviço militar obrigatório aos seis anos”. Quando já sabíamos que, na França, a média de espaço por aluno era de 2,4 m2 por aluno, enquanto, na criação bio de galinhas, a média era de 2,5 m2, ainda se condenava os jovens a duzentos dias de sequestro em sala de aula.
Quando as nossas crianças, libertas dos grilhões da velha escola, aprenderam a pensar, fizeram-nos passar por situações difíceis de gerir. Dar-vos-ei dois exemplos, que são prova de que as crianças fazem perguntas inteligentes.
Decorria a prova de aferição de Língua Portuguesa. Uma criança ergueu o braço. Hesitei em me deslocar até à sua mesa, pois não queria que pudessem pensar que eu ajudava algum aluno a dar resposta a itens da prova. Fiz sinal de que permaneceria no lugar do aplicador, junto à mesa do professor. A menina insistiu, fez o gesto de “venha cá”. E eu fui.
Perguntei o que queria. Respondeu:
“Olhe professor! Aqui, nesta pergunta, eu posso responder de duas maneiras.”
Efetivamente, assim era. Tratava-se de um “item de escolha múltipla”, que admitiria como certas duas escolhas. Dado que esse tipo de item só admite uma resposta certa, pedi a uma colega que ficasse na sala (embora as nossas crianças não soubessem o que era “colar”, “copiar”) e fui telefonar para os responsáveis pela prova.
“O teste de aferição contém um item imperfeito”
“Impossível! O teste foi elaborado por professores universitários.”
“Importa-se de verificar?”
Verificaram. E agradeceram o meu aviso:
“Muito obrigado, senhor professor. Saiba que nenhum outro aplicador se apercebeu desse erro. O senhor estava atento. Muito obrigado! Iremos anular esse item.”
“Não fui eu quem se apercebeu do item errado. Foi uma criança.”
Desligaram.
Dois dias depois, foi a vez da prova de Matemática. Eu rezava para que a embaraçosa situação não se repetisse.
Repetiu-se. Mal tinha começado a prova e logo um braço se ergueu:
“Professor, tenho uma dúvida.”
“Qual? Diz-me.”
“Aqui, diz para contar os retângulos desta gravura.”
“Sim. Tens de contar só os retângulos. Deves saber quais são…”
“Eu sei o que são retângulos, pentágonos, círculos, mas diz-me: também devo contar o retângulo à volta da gravura? Também é para contar?”
Aquela criança nunca andara na universidade. Nunca frequentara o curso de Psicologia, nem a disciplina de Psicologia da Percepção, mas sabia o que era “dependência ou independência de campo perceptivo”. Aprendera a pensar sobre o pensar, evidenciava senso crítico. Enfim! Tínhamos desenvolvidos nas nossas crianças condições de desenvolvimento de processos complexos de pensamento… metacognição.
Mais uma vez, pedi que alguém ficasse na sala, enquanto eu fosse telefonar para o departamento do ministério responsável pela elaboração da prova.
“O teste de aferição contém um item imperfeito. Poderá verificar, por favor?”
Verificaram e agradeceram:
“Muito obrigado, senhor professor. Mais uma vez, o senhor estava atento.”
“Não fui eu quem viu o item errado. Foi uma criança.”
Desligaram.
A Mallu estava a cumprir uma das inúteis tarefas de casa. A atividade imposta pela professora assim determinava:
“Marque um X no balde vermelho.”
A mãe leu o exercício, que a professora mandara resolver. E explicou à filha em que consistia o dito. Nos seus seis aninhos esclarecidos, a jovem respondeu:
“Tão achando que a gente é burro… né, mãe?”
Por: José Pacheco
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