Lourinhã, 5 de outubro de 2041
Como quem conta um conto, insistirei num memorizar talvez traído pelo desgaste de setenta anos de um contínuo porfiar pela remissão dos pecados do “sistema”, traduzido pelo intenso peregrinar pelo chão das escolas.
Hoje, regressarei aos anos setenta. Por essa altura, participei na experiência da chamada “fase de escolaridade”, que culminaria na organização do sistema educacional em ciclos. Fui um dos professores escolhidos pelo ministério da educação, para participar num grupo de trabalho de reorganização do currículo básico, substituindo os chamados “programas laranja” pelos “programas de capa verde”.
Não se tratava de uma simples operação de troca de cor, mas de substancial reorganização curricular. Ao fim de uma semana de intenso labor, apresentamos um “laranja” mudado e acrescentado. Propúnhamos a substituição do regime de “classe”, até então adotado no ensino primário, pela organização da “escolaridade primária” num “ciclo” único. Operava-se uma ruptura com o modelo da escola graduada, excludente e seletiva.
A semana culminou com uma reunião, em que participaram inspetores e outros representantes do ministério. Foi-nos dito que o “sistema” passaria a ser organizado em ciclos, mas que, dentro de cada ciclo, a “primeira classe” passaria a ser chamada “primeiro ano”, a “segunda classe”, seria o “segundo ano”, e por aí adiante… Isto é: o total desvirtuamento da concepção de “ciclo de escolaridade”.
Quis saber o porquê da ministerial decisão. Foi-me dito que, na véspera, os editores e livreiros se fizeram representar num encontro, em que manifestaram receio de “perda de investimento”. Vender manuais anualmente lhes daria maior lucro do que publicar manuais de quatro em quatro anos. Razão de peso, como se vê, para deitar por terra uma reorganização curricular.
Associações profissionais e sindicatos também deram uma “ajudinha”, fazendo recuar a ministerial opção pelo “ciclo de escolaridade”, alegando não estarem os professores preparados para tal mudança. Instituições de formação de professores se quedaram mudas, perante o despropósito. E a universidade, desrespeitosamente, pecou por omissão.
Nos idos de vinte, a lei de bases nos informava que o ensino básico estava organizado em ciclos. Pura ilusão! As cartilhas e manuais didáticos eram vendidos com a inscrição “ano de escolaridade”. A mesma lei não permitia reprovações (eufemisticamente, designadas de “retenções) dentro do ciclo. Mas, havia quem… “não passasse de ano”.
Eram inúmeras as omissões e as contradições de um “sistema de ensino”, que não conseguia… ensinar. De reforma em reforma, o ministério foi disfarçando mazelas, semeando ignorância e corrupção intelectual e moral. A racionalidade técnico-administrativa prevalecia sobre qualquer esboço de mudança fundamentada em critérios de natureza científica. Também neste caso, o ministério agia à margem de uma lei, que estipulava deverem os critérios de natureza científica prevalecer sobre os administrativos.
Até à década de vinte, as iniciativas ministeriais tinham consistido na introdução de “modismos” num obsoleto modelo educacional, sob a forma de aparências de inovação, que em nada contribuíram para garantir o direito à educação.
Por contumácia, ou por ignorância, diretores e ministérios descumpriam a lei. Autoritariamente, se opunham a tentativas de mudança. E eu lamentava a torpe conivência de alguns cientistas da educação nessa criminosa farsa.
Até que chegou o tempo do exercício digno da profissão de professor.
Por: José Pacheco
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