Mira de Aire, 8 de outubro de 2041
Queridos netos,
Hoje, abordarei um assunto muito delicado. Não poderia ficar indiferente, contornar o assunto, pois se me apresentaram, neste outono de quarenta e um, situações que eu imaginaria estarem, desde há muito tempo, erradicadas.
Como vos tenho dito, nos idos de vinte, ainda havia resquícios de fundamentalismo e intolerância, não só política, mas também religiosa. Ainda sofríamos as tribulações da proto-história da política e da religião. Rastreei velhas memórias, para buscar as causas de desumanizadores paradoxos. E fui cair em recordações da primeira infância.
Na minha sala de aula de uma escola do Portugal de Salazar, ao lado da fotografia do ditador, havia um crucifixo. Os dias começavam com “salve rainhas, ave-marias, pais-nossos”, entoados em alta voz, à mistura com uns tapas dados na cabeça de quem rezasse em surdina. Seguia-se o estridente cantar de hinos fascistas. E, como é bom de ver, no aquecimento para a ensinagem, que se seguiria, também não faltavam as reguadas assentadas nas mãos daqueles que não tivessem feito devidamente o trabalho de casa.
O meu colega de mesa era filho de um exilado político. O seu pai era “protestante”, mas o Jorge fingia ser católico. Descoberto, foi rudemente segregado pelos fundamentalistas da época. O professor não perdia uma oportunidade de o humilhar e de, sem pretexto aparente, o agredir verbal e fisicamente. Era raro o dia em que não o “chamasse ao quadro”. Mais raro ainda, era não o agarrar pelos cabelos e lhe bater a cabeça no quadro negro, no final da “chamada”.
“Vai-te lá sentar, meu increuzinho! Vai! E não chora! Ouviu?
O Jorge engolia o choro e lambia furtivas lágrimas. A turma, hirta e muda, desviava o olhar da repulsiva cena. E baixava a cabeça, na esperança de não ser, também, um “bombo da festa”.
O Jorge expiava pecados que não cometera. Era a vítima perfeita de um sádico, que a ditadura fizera “professor”. Sentado na mesma carteira, sentindo o seu oculto soluçar, eu me condoía, chorando por dentro e aprendendo a odiar.
“Oikos” é uma palavra grega, que designa “toda a terra habitada”, a nossa casa comum. Ecuménico será todo o movimento que vise a unificação das igrejas, ou a sua aproximação, a cooperação, a busca fraterna da superação das divisões entre diferentes credos e igrejas. É Jean-Yves Leloup quem o diz:
“Fazer parte, ou não, do corpo de Cristo não é uma questão de rótulo, mas de comportamento”.
Se assim não fosse, para além do poder castrador psicológico e sexual, a sociedade exerceria sobre as crianças um pavloviano condicionamento espiritual, produziria crianças “normais”.
O pai do Nuno explicou a razão da transferência do filho para a nossa escola:
“Tirei o meu filho daquela escola porque ele sofria muita humilhação só por ser uma “criança adventista”.
Algo me feriu o ouvido:
“O que seria uma “criança adventista”? Acaso haveria “crianças socialistas”, “crianças flamenguistas”? Ou apenas “crianças“?
Os mesmos que rotulam crianças de “evangélicas”, “católicas”, ou qualquer outro adjetivo, também são lestos a afirmar a normalidade dos seus infantes:
“É uma “criança normal. Segue a minha religião”.
E evocam passagens da bíblia para justificar a rotulação. Porém, das suas bocas ímpias, a palavra “amor” sai amordaçada. Na sua sanha contra a homossexualidade, ou outra qualquer “diferença”, não levam à letra outra passagem da Bíblia, que também nos fala do amor:
“A angústia oprime-me por ti, ó meu irmão Jónatas! Tu eras toda a minha delícia; o teu amor era para mim mais precioso que o amor das mulheres” (Samuel I, 26)”.
Por: José Pacheco
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