Fajão, 18 de outubro de 2041
Já aqui vos falei de dispositivos criados, ou recriados, na Ponte. Perdoai que insista, pois havia (nos idos de vinte) muito boa gente crente de ser possível instaurar situações de sã convivência, sem que regras fossem estabelecidas. Também havia quem acreditasse na possibilidade de um caos organizado, a partir de obrigações decretadas pelos professores. Mero engano de alma ledo e cego…
Na Ponte, os alunos organizavam debates e rodas de conversa, para preparação de propostas do que chamavam “Lista de Direitos e Deveres”. Submetidas à Assembleia e após a sua aprovação, os alunos as faziam cumprir, aplicando a “Magna Carta” de um sistema de relações.
Por vezes, o “Preciso de Ajuda” atuava como recurso para resolução de conflitos, dispensando a aplicação de “sanções”. Quando tal não acontecia, o não-cumprimento de um “dever” era sancionado com a privação do direito correspondente, por um período fixado pela Mesa da Assembleia.
Sempre que surgia um “caso” – era o nome que as crianças davam às prevaricações – para resolver, ficávamos apreensivos com a severidade das crianças. Também nos preocupávamos com o fato de ter sido criado um “tribunal”. Até ao dia em que uma pequenita propôs que se criasse uma “Comissão de Ajuda”. O “Tribunal” sumiu.
Com o passar do tempo, a “Lista de direitos e deveres” quase deixou de ser necessária. Cumprira o seu papel, as crianças tinham interiorizado “acordos de convivência”. Dispensavam-na.
O “Preciso de Ajuda” passou a ser utilizado apenas para solicitar apoio relativamente a algum assunto em que alguém sentia dificuldades. Mas, esse dispositivo somente era utilizado, após se ter já pedido ajuda ao grupo, de se ter procurado esclarecimento nos livros e em outras fontes de informação. Acaso a dificuldade persistisse, os tutores se disponibilizavam para dar uma “aula direta”.
Estou a falar-vos dos primórdios do projeto “Fazer a Ponte”, de “artefatos” produzidos nos anos setenta. Nesse tempo, o “Acho Bem” continha poucas sugestões:
“Acho bem que os professores nos ajudem; É bom termos direito de dar a nossa opinião”.
Enquanto o “Acho mal” se apresentava repleto de questionamentos:
“Acho mal que alguns meninos não peçam a palavra; Acho mal que alguns alunos não me respeitem; Acho mal que os elementos da mesa não venham pedir assuntos para a convocatória; Acho mal que alguém tenha deitado lixo para o chão; Acho mal que o Manel não aceite a minha ajuda”.
Na década de setenta, ainda havia quem pensasse que instituições geridas por diretores poderiam aspirar a desenvolver democraticidade, autonomia. Havia quem se surpreendesse perante o fato de sermos todos diretores. Uma visitante perguntou a uma criança:
“Onde fica o gabinete da direção?”
“O que é isso?” – estranhou a criança.
“Onde está o senhor diretor?” – insistiu a professora visitante.
“O Professor Zé?” – quis confirmar a aluna – “Minha senhora, ele está com as crianças da Iniciação.”
Há mais de sessenta anos, embora ainda incipientes, novas práticas escolares contagiavam as famílias dos nossos alunos e os vizinhos. Já assumiam a feição daquilo que viria a chamar-se… “comunidade de aprendizagem”.
Políticos corruptos reagiram. A comunidade reagiu. No início da década de oitenta, o vosso avô foi eleito prefeito. Num mandato feito de trabalho de equipe, uma nova cultura autárquica ganhou raízes. O trabalho realizado por associações locais e uma “geminação” com uma cidade francesa suscitou a abertura a diferentes culturas. Paulatinamente, pilares de desenvolvimento comunitário se manifestavam.
Por: José Pacheco
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