Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCLXXXV)

Arganil, 20 de outubro de 2041

Hoje, andarilhei por caminhos percorridos, no tempo em que andava pelo Portugal profundo dos idos de vinte. O nervo ciático já me vai fazendo arrastar, mas uma réstea de energia me impele a visitar amigos que fiz, na Lousã e na Pampilhosa da Serra. 

A Alexandra secundava a decisão de um presidente de câmara atento às necessidades do seu povo e que compreendera que a necessidade maior era a de concretizar mudanças em áreas estruturantes como a da educação. 

Com a Alexandra, a Raquel perseverava no estabelecimento de pontes entre o poder público e a administração das escolas, abrindo rotas de cooperação, que culminariam, anos mais tarde, na criação de uma rede de comunidades muito visitada por forasteiros em busca de conhecimento e de criativos modos de humanizar a educação.

Na Residência dos Professores, a Amélia, a Filomena e a Cristina cuidavam bem de nós, preparavam fartos banquetes bem regados a tinto da região. A nossa amiga Patrícia nos ajudava a integrar socialmente e nos levava até à Lousã, onde conhecemos o Luís e outra Patrícia, tão idealistas quanto nós e que tinham sonhos de melhorar o que de bom já faziam. 

A filha do Luís e da Patrícia estudava em Coimbra, tal como a filha da Alexandra. O casal residia e trabalhava na Lousã, mas precisaram de ter casa em Coimbra, porque não tinham conseguido encontrar, na Lousã, uma escola à medida da educação a que aspiravam. Comprometi-me em os ajudar e foram muitas as viagens serranas. Numa delas, sentei-me à mesa de um café, perto da Status. E, enquanto a Cléo foi xeretar umas lojas, voltei a minha atenção para o jornal diário, que estava, ali, à mão de semear. A manhã estava fria. E, enquanto esperava um cafezinho quentinho e um cálice de medronho, li, escarrapachada no jornal, a seguinte notícia:

“Autarca disparou caçadeira contra família estrangeira, por ódio racial. Fez comentários xenófobos, em discussão com homem natural do Curdistão, que tem nacionalidade sueca e passava pelo Alentejo com a mulher e sete filhos.”

Em pleno século XXI, o ódio racial expresso num cobarde ataque a uma família estrangeira gerou indignação, era considerado “inexplicável” (sic). Mas tinha explicação. 

Os indignados leitores talvez não desejassem assumir a sua quota parte de responsabilidade face ao “inexplicável”. Não se sentiriam responsáveis por tão “inexplicável” acontecimento. Raros eram os que, individualmente, assumiam responsabilidade por pecados cometidos pelo coletivo. Apenas os consideravam “inexplicáveis”, à semelhança de outra notícia, lida no mesmo jornal: 

“Mais de 1,6 milhões de portugueses vivem abaixo do limiar da pobreza”.

Na mesa ao lado, alguém comentou:

“É inadmissível! É inexplicável”

O inadmissível, o inexplicável não ficou por aí. Outras notícias me chamaram a atenção:

Bullying: Metade das agressões acontece nas salas de aulas. Aspeto físico e notas são os principais motivos apontados pelos alunos para atos de bullying. Recreio é o principal palco da violência nas escolas. Diretores, dirigentes de associações e pais receiam possível aumento de casos, este ano letivo, após meses de ensino à distância.

“Quase metade dos estudantes universitários tem nível inadequado de literacia em saúde.”

“São os alunos com menos rendimentos e cujos pais têm escolaridade mais baixa quem apresenta maiores dificuldades nesta área.”

Escondida num discreto cantinho do jornal, li outra notícia:

“Risco de pobreza diminui à medida que a escolaridade aumenta.”

Talvez nesta sentença residisse um princípio de explicação do… “inexplicável”.

 

Por: José Pacheco

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