Pessegueiro, 29 de outubro de 2041
No outubro de há vinte anos, num dos estados brasileiros, foi aprovada uma lei que liberava a educação domiciliar. A aprovação do ‘homeschooling’ iria seguir para sanção ou veto do governador. Esse projeto fora reprovado pela Comissão de Educação, que chegara a fazer uma audiência pública sobre o tema. No entanto, voltou a ser discutido, após passar pela Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente.
Os sindicatos manifestaram-se contrários à decisão e garantiram que entrariam com pedido para anular o projeto:
“É uma medida que prejudica adolescentes e crianças que serão cerceadas do espaço escolar, prejudicando o seu desenvolvimento dentro do ambiente escolar e sua diversidade”.
A mãe da Gabriela decidiu que a sua filha aprenderia em casa o que havia para aprender. Porém, as escolas diziam não existir legislação que permitisse o ensino doméstico. A mãe era teimosa, procurou e encontrou a lei. Para levar adiante as suas pretensões, só faltava uma escola que assumisse a avaliação da aprendizagem caseira. E encontrou-a.
Decorridos alguns meses, depois de me aperceber da existência de duas solidões partilhadas – filha única e mãe solteira – sugeri que a Gabriela frequentasse a escola com maior assiduidade. A mãe quis saber por quê.
“Para poder brincar com outras crianças” – respondi.
Disseram à mãe do Artur que não valia pena ele ir à escola:
“O seu filho tem câncer e, como não tem cabelo, os outros alunos xingam-no. A leucemia poderá levá-lo em poucos dias. Para que serve aprender a ler?”
A mãe do Artur não se resignou. Se a escola do bairro recusava o seu filho, foi procurar ajuda numa escola distante de casa. Como o Artur não podia sair do seu quarto, os professores da Ponte praticaram ensino domiciliar.
Quando pediu à mãe para ir brincar com os meninos da Ponte, o Artur foi e brincou. A escola e a família viveram juntas a passagem pelo hospital, onde foi submetido a uma transfusão de medula. A morte anunciada não o proibiu de brincar e aprender. Foi feliz enquanto lhe restou um sopro de vida.
Com estes casos, ilustro uma afirmação: o debate sobre os riscos do homeschooling parte de uma falsa questão.
Que me seja permitido um breve parêntesis. Aprendemos uns com os outros mediados pelo mundo, na perspectiva da cidade educativa freiriana. Por isso, entendo que a tensão entre domiciliar e escolar não tinha razão de ser, embora eu compreendesse os receios dos críticos. O domiciliar poderia engendrar monstrinhos do digital, poderia reforçar o têvêschooling (milhares de horas de tv), ou servir ocultos interesses de fundamentalistas e terraplanistas.
Nos idos de vinte, eu não fazia a apologia do ensino domiciliar como alternativa à escola (adivinhava subtis discriminações, pois nem todos a ele teriam acesso), nem o dito “homeschooling” garantia a todos o direito à educação. Eu pugnava por uma Escola de Todos, agente de transformação social, que assegurasse o direito universal de acesso e de sucesso… tanto nas escolas como nos lares.
A recusa já assumida por muitas famílias era mais um sintoma de uma profunda crise. O acirrar da competição pela demarcação de territórios e as histéricas reações contra o ensino domiciliar nada resolviam. Se muitos pais duvidavam da utilidade das escolas, não seria oportuno que as estas refletissem sobre o porquê dessa dúvida?
A propósito… Li um dístico na porta de um restaurante: “ESFIRRARIA”. Se o Brasil tão bem adaptava estrangeirismos, por que se socorria de uma palavra inglesa para designar a prática de ensino domiciliar? Voltarei ao assunto.
Por: José Pacheco
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