Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXLIV)

Conceição de Tavira, 25 de dezembro de 2041

Há vinte anos, por esta altura, o vosso avô estava no sul de Portugal. Em entrevista, a ministra da saúde informava que esse Natal ainda não seria passado “em perfeita normalidade”. Restava-nos fazer a reunião de família, numa solidão acompanhada. Ou, virtualmente, pois quem ama nunca está sozinho.

No dezembro de há vinte anos, era noticiado que, em muitos hospitais portugueses, a maioria das pessoas internadas por complicações originadas pela COVID eram pessoas que tinham recusado vacinar-se. O estado gastara milhões de euros, para as convencer a não se colocarem em perigo e a não colocarem os seus semelhantes em perigos iguais.

Havia quem propusesse que os não-vacinados fossem impedidos de sair de casa e que pagassem o tratamento hospitalar. Numa sociedade dividida entre direitos e deveres, numa cidadania mitigada, não sabíamos como agir. Entre a desumanidade e a ignorância, prevalecia o medo e o salve-se quem puder. A escola não nos havia preparado para gerir a dramática situação.

Pela primeira vez, não cumpri o preceito natalício de “desejar boas festas”. Mas, senti os familiares e amigos, mesmo os definitivamente ausentes, mais presentes do que nunca. E, mais intensamente do que em anos anteriores.

Não enviar mensagens com os tradicionais votos não significava que estivesse alheio à celebração daquele dia. Festejava-se o nascimento de um Menino-Deus, que ninguém sabia quando nascera. A festividade fora oficializada como Natale Domini, cristianizando festas pagãs romanas do solstício de inverno. Era invocada a peregrinação do Rei Gaspar, em demanda do Rei dos Reis.

No conto “Os três Reis do Oriente”, a Sophia escrevera:

“Uma delegação de homens importantes veio ao palácio de Gaspar. E disseram:

Por que não te apresentas no templo do Bezerro? Por acaso te falta oiro para a oferta? Que tens tu de comum com a ralé das docas? Não estás por acaso vestido de púrpura e de linho como um rei? Porque desafias o poder de Zukarta? Serás um traidor? No culto do Bezerro está a prosperidade e a grandeza da Kalash. Estarás vendido aos nossos inimigos?

Gaspar respondeu:

Não posso adorar o poder dos ídolos. O meu deus é outro e creio no seu advento, que a Terra e o Céu me anunciam.”

No Natal de 2021, novos magos anunciavam o Advento de uma nova Educação. A um coro de esclarecidas vozes denunciadoras de pérfidas formas de abandono intelectual se juntava a voz das crianças:

“Parece que a escola existe para nós não aprendermos”.

Assim se manifestava um jovem, chegado ao projeto Âncora há cerca de uma semana. Até os mais jovens despertavam para o processo de obsolescência da instituição, que os “desaprendiam”. As universidades, as escolas, a ensinagem “superior” e a “inferior” reproduziam o “ensino simultâneo”, que Jean de La Salle introduzira no tecido social do século XVII. Arcaicas e insanas práticas se perenizavam, o abandono intelectual permanecia impune. Tardava uma nova construção social, que pusesse um ponto final num pesadelo de séculos.

Discretamente, como convinha a um português aprendiz de Brasil, eu dedicara os últimos anos da minha vida de professor ao Brasil da Educação. Nesse fraterno envolvimento, eu aprendi mais do que ajudei a fazer o Natal da Educação.

Durante décadas, me juntei a milhares de educadores, na causa das crianças. Voluntariamente, me privei de estabilidade emocional e afetiva. Nas casas de amigos ou na solidão de quarto de hotel, não lamentava o tempo gasto, mas o corpo já se queixava. Chegava o tempo do desapego, de confiar a outros tarefas várias e… descansar.

Por: José Pacheco

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